terça-feira, 30 de abril de 2013

tempestade

Fotografias de tempestade em Saturno,tiradas pela sonda Cassini. Um furacão de dois mil quilómetros de diâmetro com ventos de mais de 500 km/h. Apesar das cores serem "falsas", são obtidas por infravermelho e de forma automática tendo em conta diferentes comprimentos de onda: this scheme means colors correlate to different altitudes in the planet's polar atmosphere: red indicates deep, while green shows clouds that are higher in altitude. 





bife

Blogger Vareta disse...
Tu és um miúdo com alguma piada - mas não sei porque é que insistes em definir 'a escrita' (ou a literatura) a partir da tua escrita. Esta tua tentativa de sistematização faz-me lembrar um adolescente a escrever um tratado sobre o pulso apenas porque se masturba.
Vareta, companheiro de mais de uma década de blogues e aventuras diversas, tem por hábito interpelar-me de forma acutilante e concisa, como é exemplo comentário supracitado.

Talvez haja aqui um problema de informação incompleta, uma vez que os meu tratados e tentativas de sistematização são uma pequena parte de um esforço maior e invisível ao blogue, o esforço de escrita do segundo romance.. É o mesmo que tirar notas quando se cozinha de improviso. Experimentam-se ingredientes, temperos, tempos de cozedura, combinações, tudo por instinto, depois prova-se e anota-se 'como deve ser cozinhado' tal e tal prato com coisas como 'o bife deve ser surpreendido por calor extremo na frigideira, assim se constituirá uma camada bem passada que preservará os sucos da carne no interior mal passado'. É mais para mim. É preciso muita fé, estamos quase sempre sozinhos.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

o diabo está nos detalhes

Embora garantindo que consigo a primeiro-ministro a austeridade irá continuar, Seguro explicou que "há uma diferença entre austeridade e política de austeridade". "A austeridade do rigor e da contenção orçamental, essa é a austeridade com que o PS está de acordo", disse. - DN

sexta-feira, 26 de abril de 2013

notas

1. Na escrita, o combate é contra o tédio e o aborrecimento de mim próprio. Tenho de me surpreender e entreter. O que estou a dizer a mim próprio? Esse mistério deve ser suficiente para me manter entretido e acordado.

2.
Num romance, é preferível um "bom erro" do que a perfeição previsível. Um bom erro surge quando o autor se esqueceu de que o estavam a ler. A originalidade está no desvio face ao que seria de esperar.

3.
É mais verdadeira a representação de uma árvore com olhinhos e sorrisos do que um desenho realista de uma árvore a sério, porque o desenho da criança não esconde o facto de que moléculas de carbono e água poderem formar um ser vivo, com base em minerais e luz do sol é, na essência, tão absurdo como uma árvore ter olhinhos e sorrir. O desenho realista faz-nos esquecer isso. O infantil atira-nos com a subjectividade à cara e é original

As crianças demoram tempo até considerarem outros seres humanos como "iguais" e são extremamente egoístas. Só elas existem. A linguagem fornece depois a ilusão de que essa distância não existe e de que somos iguais. Mas não somos. Uma pequena distância contém uma infinidade de pontos e, na distância, está a originalidade, no fundo, aquilo que existe na grande arte e que Harold Bloom designa por "estranhamento".

Já como adultos, não geramos qualquer empatia e amor apenas pelo facto de sermos originais e estranhos, temos de ser bons. Já não há pai e mãe a babar-se por qualquer rabisco nosso. Pelo contrário, o artista luta sempre contra a desconfiança e cepticismo dos outros. Tem de se fazer respeitar. A forma como muitos leitores se encarniçam feitos chihuahuas histéricos ao primeiro erro ortográfico num texto de outro modo bom, já nem digo genial, é disso exemplo.

4.
Uma das características da não-arte é sufocar a liberdade de nos descobrirmos sozinhos. A mediocridade do ser humano médio explica-se por doses de cobardia e muita, muita preguiça. Tem horror de se descobrir sozinho e preguiça de tentar aproximar-se de si e dos outros.  A preguiça é muito patente no facto de nenhum artista beneficiar mais da percepção do "isto deu trabalho" do que o escritor. Pode escrever 300 páginas de lixo que pelo menos as pessoas dizem "fónix, nunca seria capaz de escrever 300 páginas". O pintor de pintura 'abstracta', o fotógrafo ou o DJ, sofrem do problema contrário: "isso também eu fazia, uma mancha branca com pintas vermelhas" ou "com as máquinas digitais, qualquer pessoa faz isto" ou "isto é só colar música e mexer no computador com o rato". Paciência.

 5.
Conceitos como dor, amor, tristeza, traição, mentira, honra, alegria, são suficientemente flexíveis para poderem conter em si as diferentes concepções de cada um e criar a ilusão de que somos iguais e de que há uma comunicação total. Os escritores medíocres fornecem a palha das manjedouras que são as prateleiras das livrarias. Se a Paula compra um livro que tem na capa "faz-nos olhar para dentro de nós e reflectir na condição humana" é isso mesmo que Paula espera obter pelo seu dinheiro, pois não cabe na cabeça de ninguém comprar uma aspirina que não tire dor de cabeça conforme vem anunciado na caixa, muito menos um medicamento que dê ainda mais dores de cabeça, como sucede com muito boa literatura.

6.
As coisas da linguagem funcionam nos dois sentidos: somos o resultado dos conceitos, mais do que criadores. Não é preciso ir a uma tribo dos amazonas. Numa reportagem de rua,  metida num desses vídeos de "gaffes" da RTP Memória, entrevistam um casal de populares portugueses e perguntam ao homem "como conheceu a sua mulher?". Ela ri-se e encolhe-se, coradinha e rechonchuda e o homem responde com o maior à vontade: "cheguei-me ó pé dela e disse-lhe assim: vou-te comer. E comi". Não leram Shakespeare ou Cervantes, deduzo. Ah, a imensa liberdade de não ter lido nada... Como recuperar isso? A verdadeira comunhão reside na consciência de que nos fazemos companhia uns aos outros no mistério da solidão. E aí, não seriam necessárias palavras, apenas um olhar, um aceno de cabeça, um 'eu sei que tu sabes', um chegar ao pé e comer. A escrita, por mais ou la la que seja, tem de ter esse chegar ao pé e comer.

terça-feira, 23 de abril de 2013

segunda-feira, 22 de abril de 2013

fisioterapia

Em três semanas de férias não escrevi nada, apenas li obras completas de Borges (magnífico) até ele entrar na poesia (um horror) e Nabokov. Quando voltei e tentei pegar de novo no segundo romance, num conto ou no blogue, senti-me como se estivesse em recuperação depois de um AVC. Ainda estou ligeiramente enferrujado e escrever parece-me um exercício de fisioterapia. Uma coisa impressionante e angustiante e foram só três semanas. A convivência com o mar das caraíbas, peixes coloridos, margaritas e ruínas maias, trouxe-me para o "agora" e para o "real", eliminando a necessidade de imaginação e fuga. No fundo, senti-me como qualquer um de vocês se sente no dia a dia, só que sem ser nas Caraíbas rodeado de peixes coloridos. Brrr! Não queremos isso...  Como um jogador de futebol descobre, à primeira lesão, que afinal o corpo dele não é uma máquina mágica perfeita, também eu me apercebi de quão frágil é o próprio talento. A pouco e pouco vou recomeçando a povoar a cabeça de sinceros guaxinins e tudo parece bem encaminhado. Fora isso, se estivermos a falar de uma cidade onde não haja muitas pessoas diferentes umas das outras, como sucede em metrópoles muito cosmopolitas como Londres ou Nova Iorque, sou uma pessoa igual a qualquer outra que se vê na rua.

se um espanhol lhe pedir um chupito

Os espanhóis sentem-se bem no México pois conseguem entender o que lhes dizem. A mania de espanholizar implacavelmente qualquer palavra inglesa, para além de os fazer parecer mentecaptos em muitas discussões ao primeiro 'U dos' ou 'Piedras Rolantes', também lhes prega partidas quando pedem chupitos aos barmens mexicanos que os olham de lado e disfarçam o embaraço, apesar de estarem há muito expostos à situação  de espanhóis lhes pedirem chupitos a torto e direito, às vezes em grupo. Um homem heterossexual dificilmente se habitua a uma coisa dessas. No México, como em qualquer parte do mundo civilizado, um shot diz-se... shot. Não seria assim tão complicado, mas U2 também não. Os guias mexicanos que levam os turistas de autocarro de um lado para o outro, têm sempre o cuidado de avisar os espanhóis do significado de "chupito" em mexicano, recorrendo a metáforas e eufemismos, uma vez que há sempre famílias com crianças que não podem ouvir. E não é que os espanhóis ficam surpreendidos com esta revelação e se riem?

Digamos que eu desconfiaria que pedir "una mamadita", "una chupadela", "una chupetina" ou "una chupadita" ou outro termo qualquer semelhante em portunhol, tivesse uma possível conotação sexual em qualquer língua e cultura hispânica, sendo preferível usar o seguro "shot" sem arriscar levar um tiro do barman. Mas tudo bem.

E agora uma música.

Streetlight Manifesto - Everything Went Numb

podia escrever n'A Bola, por exemplo

OBRA DE GÉNIO NA GALERIA DA LUZ
[foto do remate acrobático de Lima] 
Sálvio salvou, Matic matou, Artur aturou, Gaitan gaitou e Lima limou as grades da prisão leonina
 Olah John entrou e disse olá. Bruma ineficaz contra gorilas da defesa benfiquista.

No duelo que colocou frente a frente as formações dos experientes técnicos Jorge Jesus e Jesualdo Ferreira, o Benfica rubricou uma exibição apagada, mas matou o jogo em dois lances de génio, respectivamente na primeira metade e na segunda metade da contenda. O Sporting apresentou uma equipa bem montada de acordo com as instruções de Jesualdo que, ao longo dos 90 minutos, não se cansou de apoiar e motivar os seus pupilos. Gaitan rubricou mais uma exibição de luxo para resumos televisivos com duração máxima de dois minutos, montante temporal a partir do qual se verifica um decréscimo abrupto da valorização financeira do passe do argentino. A turma orientada por Jorge Jesus, na presente temporada, apresenta-se evoluída no capítulo ofensivo e extremamente agressiva no capítulo da finalização, condições essenciais para redigir um bom livro de jogo, sendo que os prefácios, epílogos, capítulos intermédios e capítulos de introdução, áreas em que os leões são mestres, não redundam na contabilização de três pontos e explicam o abismo pontual entre os dois vizinhos da 2ª circular. O Sporting reclama três infracções técnicas na área de rigor prontamente não assinaladas por João Capela. Maxi Pereira, apesar dos seus esforços, não conseguiu materializar os lances de infracção técnica e disciplinar a que se propôs com afinco, quer em castigos máximos, quer em admoestações com cartolina amarela ou encarnada. Na primeira parte, Salvio abriu o livro e correspondeu da melhor forma a uma assistência de Gaitan. Na segunda parte, momentos antes de Lima facturar e fazer avançar o marcador, Jorge Jesus retirou parte da carne que estava toda no assador, gerindo assim o grelhado misto de treinadores leoninos que têm sido os derbys de há quatro temporadas para esta parte. Cardozo foi substituído e não gostou, tendo manifestado o seu desagrado por intermédio de gestos, palavras, expressões faciais, pantominas diversas e aplicação de palmadas no banco de suplentes, felizmente desocupado no momento. Contudo, quando Lima finalizou da melhor forma a autêntica obra de arte tikitaka das águias, protagonizada por Gaitan, foi notória a felicidade do avançado paraguaio que se levantou do banco e aplaudiu os seus companheiros. O Benfica apresenta-se assim bem posicionado na senda da recta final da revalidação de um título que lhe escapa há demasiado tempo e que os adeptos reclamam no seio da Luz. O Sporting prossegue a luta nas duas competições que ainda disputa: a competição pelo lugar na Europa e a competição para evitar a despromoção da camisola verde e branca do escalão máximo do futebol português para o escalão imediatamente inferior ao máximo.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

tartes

É preciso não esquecer o exemplo do concurso de tartes da minha aldeia que se realizou no Salão Recreativo nas festas de uma das muitas nossa senhoras celebradas no querido mês de agosto de um qualquer 1980 e qualquer coisa. A minha mãe, estrangeira que troca a capital europeia pela ruralidade lusitana num assomo de entusiasmo neo-hippie pós revolucionário, fez uma tarte de maçã. Apresentou-a ao juri de tartes, ela que nem articulava português. Foi educadamente rejeitada pelo palato do júri de donas de casa portuguesas. Apesar da simpatia com que todas mordiscaram a arte e posteriormente contiveram os esgares, recordo-me dos seus protestos, no caminho para casa, com a tarte quase intocada. Usou pouco açúcar e não cozeu demais a maçã, para realçar o sabor e a acidez natural da excelente reineta e exercer um contraste agradável com a massa e o pouco açúcar. Disse-me que o palato português na doçaria estava muito mal educado*, as outras tartes não só tinham uma massa demasiado espessa, doce e "saibrosa", como tinham um travo a margarina e gema de ovo, sendo depois cobertas por vestígios de maçãs demasiado cozidas e empapadas em calda doce enjoativa. E assim se concluiu, logo na mais tenra infância, a minha primeira lição para enfrentar o meio literário.

guerra


Sou menino e por isso gosto muito de guerra e este livro é muito bom. Só tenho pena que tenha sido escrito em 1993 e não em 2013, terminando na Guerra do Golfo e na conclusão de que essa guerra foi a primeira guerra "justa", no sentido de ter sido aprovada pelas Nações Unidas, de responder a uma clara violação da soberania de um país invadido (Kuwait), tendo como objectivo a sua libertação, tendo recebido o aval da Rússia que até então estava num bloco oposto aos EUA e de que a tecnologia e os métodos foram direccionados para a minimização de mortos civis, o que foi conseguido com maior ou menor eficácia (isto contrapondo aos carpet bombings da II Guerra Mundial que arrasavam cidades por exemplo). John Keegan quer estabelecer a teoria de que há como que uma evolução, uma tendência, para o fim da guerra, pelo menos no contexto de mudança na cultura ocidental. Contudo, por ter sido escrito em 1993 e não em 2013, não teve ao seu dispor o retrocesso civilizacional que constituiu a posterior invasão do Iraque no contexto do terrorismo global, considerada ilegal do ponto de vista do direito internacional e baseada em provas forjadas, o que prejudica em parte a sua teoria, mas talvez apenas a atrase, se recordarmos que Obama foi eleito com base na declaração de princípios opostos ao do seu antecessor, tendo até como argumento de campanha a retirada do Iraque.

Keegan coloca a tónica na questão "cultural". Em pouco tempo ocorreu uma transformação enorme na forma como os povos encaram a guerra e basta comparação o mundo antes da II Guerra Mundial e o próprio contexto da Guerra Fria, para percebermos que de facto ocorreu uma mudança. A maior surpresa foi perceber que nos tempos da antiguidade a guerra era muito mais leve, apesar da crueldade que lhe associamos, talvez porque para nós, espadas e lanças são mais "violentas", uma vez que envolvem combate corpo a corpo, comparado com o carregar de um botão de míssil tomahawk. Não havia o conceito de guerra total e as facções em conflito evitavam perdas exageradas de parte a parte. Mesmo nas tribos mais primitivas as guerras até podiam ser relativamente simbólicas e resumir-se a um combate num sítio previamente combinado e com regras muito rígidas. Resolvido o conflito, as partes iniciavam um novo período de paz até que um acumular de tensões exigisse novo ritual catártico de combate. Paradoxalmente, a ideia de "ritualizar" o combate, e que parece tão primitiva, acaba por ter um resultado mais racional do que a "racionalidade" clausewitziana aplicada ao combate, uma vez que as perdas de parte a parte são limitadas. O Japão proibiu as armas de fogo e considerava-as imorais, vendo na pólvora um princípio químico e artificial, enquanto que as espadas feitas de aço e o seu manejo eram uma extensão da natureza e por isso moralmente superiores. Se parece irracional a opção por atrasar o desenvolvimento de tecnologia de guerra, quando se podia optar pela revolução da pólvora e subjugar povos vizinhos ou pelo menos defender-se deles, o resultado prático é que só uma pequena classe de elite (os samurais) tinha acesso quer às espadas caras, quer à habilidade para as manejar, limitando assim por largos séculos as mortes decorrentes de conflitos.

 A guerra corpo a corpo existiu com as falanges da grécia antiga e esparta e foi inovadora, sendo também utilizada de forma cabal pelos romanos, mas exceptuando esses combatentes temíveis e implacáveis, os conflitos antigos eram frequentemente de desgaste, ataque e fuga. Assim que um dos lados estava a perder ou era psicologicamente afectado perante um avanço mais afoito do outro, algo particularmente relevante nas guerras de cavalaria, um dos lados recuava e não havia desonra da retirada. As falanges gregas inovaram pela aniquilação do adversário, tendo mesmo tropas especializadas em perseguir e chacinar combatentes em fuga, mas estávamos bem longe da ideia de "destruir" um inimigo, até porque seria logisticamente complicado e exigiria um investimento ainda maior em capacidade destrutiva, algo que era visto como irracional. É curioso que só muito recentemente na história da humanidade tenha sido o próprio combate a matar mais soldados do que a doença e privações a que eram submetidos quando em campanhas, devido a estas limitações logísticas. É curioso que só muito recentemente tenha sido o próprio combate a matar mais soldados do que a doença e privações a que os soldados eram submetidos quando em campanhas de guerra.

Apesar do exército romano democratizar o acesso à carreira militar, não existia a ideia de recrutamento maciço, ideia que só foi introduzida com Napoleão e que dava o direito (ou  obrigação) de todo o homem se alistar no exército e combater, um prenúncio da hecatombe da primeira guerra mundial em que morreram 9 milhões de jovens patrioticamente inflamados. A civilização ocidental era (é) efectivamente a mais bárbara de todas, no sentido de ter sido ela a potenciar inovações tecnológicas e teóricas (Clausewitz) para permitir e justificar uma guerra total que fosse decisiva e aniquiladora. Antes, não existia a ideia de um conflito se resolver de forma total em batalhas decisivas em que o adversário era eliminado. Como os combates eram limitados entre uma pequena fracção das populações, era impossível duas sociedades destruírem-se mutuamente de forma tão arrasadora como nos conflitos modernos. Claro que é preciso ter em conta as questões tecnológicas e logísticas. Se morreram 9 milhões na I guerra, também se deveu em grande parte à utilização dos caminhos de ferro, pois antes disso, mesmo que quisessem, era impossível mobilizar tanta gente para uma frente de batalha. Contudo, antes de Napoleão, a ideia fundamental é a da compartimentação da sociedade entre guerreiros e civis normais, sendo que quem fazia a guerra também não tinha interesse em estender o privilégio de usar armas (ou a chatice de morrer em combate) aos desgraçados que só queriam cultivar as terras e ordenhar vacas. Isto resultava numa minimização de mortes em caso de guerras, pois a proporção de militarizados numa sociedade era mínima.

A filosofia e cultura Chinesa era (e é) fortemente avessa à resolução dos conflitos pela violência, favorecendo conflitos que não se resolvem em batalhas totais e decisivas (basta pensar no Vietname para ver a aplicação prática destes princípios e na posterior replicação destas técnicas em toda a áfrica colonizada) privilegiando ataques, recuos e avanços, manobras esquivas, guerra psicológica e controlo da situação até à desistência e subjugação do adversário por desgaste, em vez de grandes batalhas decisivas. Mesmo hoje em dia, o próprio terrorismo islâmico, com o expoente máximo do 11 de Setembro, apesar de chocante, desumano e bárbaro, não tem qualquer efeito definitivo, isto é, não tem qualquer efeito no adversário que não o de desgaste. Talvez por isso nos pareça a nós, ocidentais, mais absurdo e abjecto, uma vez que não tem qualquer efeito prático concreto na destruição de um inimigo, enquanto que os "danos colaterais" das "bombas inteligentes" e que podem multiplicar por 10 ou 100 ou 1000 a contabilidade das vítimas do terrorismo, como estão ao serviço de uma intenção concreta e racional (eliminar talibans, depor um líder, destruir terroristas, libertar um país etc.) e que por isso são mais compreensíveis ou justificáveis.

Keegan diz, e a meu ver bem, que a esmagadora maioria das pessoas não é violenta. Apesar de todos termos potencial para a violência, a verdade é que na maior parte das culturas privilegiamos valores como o entendimento, a ajuda mútua, o respeito, uma vez que sem esses valores mergulhamos num caos que é prejudicial a todos. Faz assim a defesa da necessidade dos exércitos e da força, pois concentra de forma disciplinada e organizada a capacidade de combate num grupo restrito de pessoas treinadas para tal. As próprias forças da lei e ordem são disto reflexo, sendo efectivamente mais bárbara a ideia de que seríamos nós a ter de pegar em armas para nos defendermos do que confiar em que lide com a violência por nós. A própria ideia de dissuasão exerce sem dúvida um efeito preventivo da violência. Cada potencial criminoso não enfrenta um cidadão isolado, mas sim todo um "exército" preparado para lidar com ele.

Termino com a nota de que nos EUA foi chumbada a lei de restrição de armas que Obama tentou passar. O princípio subjacente a essa rejeição não é fundamentalmente o da auto-defesa contra eventuais criminosos e substituição do papel que competiria ao estado e às forças de segurança oficiais. O princípio é o da desconfiança face ao próprio Estado, às suas forças de segurança e exército. A ideia de que o americano tem direito a defender-se de forma violenta de um Estado que lhe seja hostil e opressor, escrita na constituição é, sob qualquer prisma, a evidência de uma sociedade ainda culturalmente atrasada e que nem sequer sarou as feridas de uma guerra civil. Podia fazer sentido na génese daquele país, em que as distancias geográficas, dificuldades logísticas e de comunicação, isolavam populações de um poder central e da eficácia das forças da lei e ordem. Até admito que alguns casos assim é e acho legítimo que um agricultor isolado geograficamente tenha ao seu dispor um mecanismo de dissuasão. Mas  sob qualquer prisma que se queira ver isto, não vejo hipóteses de ter outra conclusão que não a do atraso. O prisma mais imediato e natural é considerar os defensores das armas nos EUA como atrasados mentais e somar a isto ainda a importância do mero lobby económico dos fabricantes de armas. Outro prisma é considerar, como fazem tantos liberais de pacotilha portugueses que se babam com estas coisas, que o facto da lei ter sido chumbada é um sinal de saúde da democracia americana. Mas isto é esquecer que esse chumbo ocorre porque para muitos americanos a democracia representativa não funciona e não só não funciona como pode preparar um ataque violento contra o qual se devem preparar com instrumentos de violência.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

pizza

Como se chama a uma pizza quatro estações com os ingredientes todos misturados? Pizza 'aquecimento global'. :D Fui eu que inventei esta piada :) Inventei muitas outras piadas de pizza porque estava a comer pizza com a Plaft. Às tantas ela deu-me uma 'pizzadela' para eu me calar. Perceberam? Pizza dela? Pisadela? :D Enfim. Às tantas ficou cansada de tanto rir que já nem se riu da piada do cocktail que servem nas pizzarias francesas, o Pizzang Jambon XD

afectos

Feliz por poder desviar os meus dedos 'escrevinhantes' da crise, escrevo a propósito do cepticismo dos afectos nos blogues do camarada Pipoco, rebatido pela camarada Palmier.

Uma característica curiosa dos blogues e da internet é que se forma facilmente um universo de afectos algo compartimentados no espaço e no tempo. Ocorre por vezes uma especialização das amizades. Por exemplo, eu conheço algumas pessoas com quem falo sobretudo de escrita quando as vejo pessoalmente. E até almoço às vezes com um gajo com quem praticamente só falo de Magic The Gathering (conheci-o online também). Também posso citar o exemplo de ter ido a Paris em trabalho em 2004 acho eu, e ter estado com 3 bloggers portugueses num fim de semana espectacular e depois disso, nunca mais os ter visto ou falado com eles, situação perfeitamente normal e saudável.

Há quem fale no cliche do "hoje em dia as pessoas nem conhecem os vizinhos", como se isso fosse uma coisa errada. A isso eu digo "óptimo". Não tenho qualquer desejo de arriscar conhecer pessoas de quem não posso fugir facilmente e prefiro manter relações cordiais e discretas com quem mora no meu prédio. Diga-se que cresci numa pequena aldeia e depois numa cidade de província e não tenho uma imagem romantizada da sensação que é "toda gente saber quem é toda gente". A vinda para Lisboa foi uma primeira libertação, digamos assim, os blogues a segunda, faltando a terceira que há de vir e que tem a ver com poder ganhar dinheiro por intermédio de escrita, ou seja, o plano profissional.

O que é certo é que nos momentos iniciais dos blogues e da vida virtual, existe um certo entusiasmo e predisposição que depois se pode amenizar com o tempo, um pouco à semelhança do processo que sucede quando se começa a trabalhar e ainda cometemos aquela loucura de ir para os copos e jantaradas com colegas. Com o tempo, as pessoas ficam mais selectivas, penso eu, no que respeita à predisposição para os outros, uma vez que vão também preenchendo os "slots" vazios para poderem encaixar pessoas na logística social. Quando os blogues surgiram, eram obviamente novos para todos e havia por isso uma euforia maior no que respeita a esse lado social. Eram comuns os jantares e festas (não patrocinados por marcas, como sucede hoje em dia), blogues colectivos e uma sensação de comunidade mais espontânea.

De resto, não existe qualquer sobressalto na transição de um afecto virtual para um afecto no plano "pessoal". Isto é, duas pessoas que tenham uma afinidade virtual, mantêm essa afinidade se estiverem frente a frente, com duas canecas de cerveja ou vinho, por isso pode-se deduzir que existem afectos mesmo entre pessoas dos blogues que nunca se conheceram cara a cara e que não fazem intenções de que isso aconteça. Muitas das atitudes que se esperam de um amigo, podem obter-se virtualmente também. Recordo-me que no período da doença grave do meu pai, tinha muito mais facilidade (e vontade) de escrever num blogue para desabafar, do que propriamente fazê-lo junto de pessoas fisicamente próximas que, de qualquer forma, não podiam fazer nada também. Em inúmeras ocasiões ao longo de 10 anos, fui alvo de generosidade totalmente desinteressada.

A propósito disto, as amizades do meu pai resumiam-se a "companhia para pesca" ou "companhia para caça" ou "companhia para partilhar um jantar preparado pelo próprio". A ideia de partilhar "afectos", naquele sentido meloso, era-lhe estranha. O que contava era qualquer coisa de concreto. Se um tipo não soubesse pescar como deve ser, de que lhe servia a companhia numa tarde de pesca? Ia-lhe encher os ouvidos com problemas de casamento enquanto ele se concentrava nos iscos e no engodo? Ora bem.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

perdão

O organismo liderado por Christine Lagarde considera que o nosso país tem das finanças públicas mais insustentáveis do Mundo. O envelhecimento da população, conjugado com uma elevada dívida pública (mais de 122% do PIB) e um débil crescimento económico (0,6% em 2014), coloca Portugal no grupo dos países de risco. Segundo as contas do FMI, para que a dívida pública atinja os 60% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2030, o governo tem de fazer cortes permanentes da ordem dos 8,9% do PIB. São cerca de 15 mil milhões de euros (a preços de 2013), quase quatro vezes mais do que aquilo que Passos pretende cortar até 2015. CM

O "perdão de dívida" parece inevitável. Recordo  uma entrevista que Ulrich deu a propósito do perdão de 50% da dívida grega: Evidentemente, é uma medida que eu não gosto. Não é por, sobretudo, o BPI ter exposição à dívida grega, mas porque... etc. etc.  Eh eh. Mas entendo a posição dos Ulriches portugueses e europeus. É evidente que não concordam os perdões de dívida e é evidente que nunca é de modo nenhum pelas respectivas empresas que lideram assumirem perdas, mas sim por um qualquer motivo altruísta e filantrópico. Mas se é compreensível que partes directamente interessadas defendam os seus legítimos interesses, e até de elogiar que o façam de forma pública, não consigo entender o motivo pelo qual essa hipótese nunca é discutida a tempo, de forma realista, transparente e pública pelos políticos europeus.

Os jornais alemães noticiam a hipótese de um acordo secreto para um perdão total da dívida grega em 2015. Verdade ou não, é extremamente prejudicial a perpetuação de discursos de fachada paralelos a rumores contraditórios que depois se confirmam sempre.  Se um dos motivos fosse não assustar credores e investidores, facilitando um eventual retorno "aos mercados" e sustentando medidas impopulares, então este modo de agir teve o efeito precisamente contrário, uma vez que descredibiliza os líderes europeus, até junto dos próprios credores e investidores com quem os líderes, esquecidas que estão as populações, se parecem preocupar acima de tudo. As agências de notação classificam a nossa dívida como lixo desde finais de 2011. Essa classificação não se alterou por Passos Coelho, Cavaco Silva, Schauble ou Merkl dizerem repetidamente que Portugal é completamente diferente da Grécia e que aqui não pode ocorrer um perdão de dívidas, que a Grécia é uma excepção e que está tudo a correr bem. Ainda recentemente, a solução cipriota gerou o mesmo tipo de negação ("o problema do Chipre é completamente diferente do português"). A principal crítica que as agências de notação fazem a Portugal, e que estiveram na base da classificação de lixo, é a desconfiança face à capacidade de um crescimento do país suficientemente forte para pagar as dívidas e não na desconfiança face à capacidade de impor austeridade.

De facto, devido a estas sucessivas negações da realidade e ao facto de cada líder europeu estar sobretudo preocupado em defender os interesses do seu próprio sistema financeiro no que respeita aos créditos detidos sobre outros países (reforçando a ideia do posts anteriores de que o sistema financeiro é tudo menos liberal) podemos dizer que um perdão de dívida tem efeitos mais negativos do que teria há dois anos. E isto tem sido assim desde o início da crise. Por exemplo, teria sido melhor pedir a intervenção do FMI na altura certa, em vez de esperar até não termos margem negocial. Teria sido melhor implementar reformas ainda no tempo de José Sócrates, mas fomos de PEC em PEC, negando sucessivamente a realidade e pouco tempo antes estava ele a pedir créditos para aumentar salários públicos e baixar impostos. Teria sido melhor um governo ter sido eleito com um discurso honesto, em vez de perpetuar o discurso de mentira ("não vamos aumentar impostos") etc. Toda esta crise é marcada por uma dissociação brutal entre liderança política, seja em portugal ou no resto da europa, e a realidade pura e dura das contas, o que faz com que esta crise seja muito mais uma crise das democracias e lideranças europeias do que propriamente financeira. Estou plenamente convicto que se os líderes europeus tiverem um discurso realista, credível e honesto, é muito mais fácil às respectivas populações aceitarem alterações de nível de vida.

O perdão de dívida não significa um aliviar dos sintomas da crise e é preciso dizê-lo, mas introduz alguma verdade e justiça. A ideia de redistribuir e socializar imparidades por toda uma população é absurda e tem limites. É preciso abraçar o colapso de boa parte dos bancos com segurança e coragem e esperar por uma clarificação que resulte do mero acerto de contas porque, ao fim e ao cabo, é disso mesmo que se trata, balanços, dívidas incobráveis etc. Há bancos que são credores de dívida privada e pública portuguesa e que não vão ter o dinheiro de volta, sejam bancos portugueses ou estrangeiros. Haverá desmantelamento de bancos e nacionalizações (em vez das injustas injecções de capital). Muitos privados sofrerão com isso, embora nesta fase estejamos todos um pouco convencidos que vamos sofrer der por onde der. No fim sobrará um sistema financeiro mais forte e "limpo", como sucede em qualquer sector se deixarem a concorrência funcionar

Se o euro acabar no processo, ou nós sairmos dele, então isso será uma consequência dos factos que de qualquer forma são inevitáveis, como foram até agora. Tenho a suspeita de que a importância política do euro só poderá voltar à mesa num contexto em que é posto definitivamente em causa. Se o Euro continuar, também continua mais forte do que é actualmente, uma vez que estará mais liberta de incerteza e resultará de um compromisso assumido num contexto muito mais realista e informado do que aquele em que foi, à pressa e muito "optimisticamente", criado.

Há outro argumento importante a favor da precipitação rápida dos factos, versus o arrastar da situação. Se os europeus pudessem optar entre duas hipóteses, uma em que tudo é revelado e batemos no fundo rápido para crescer mais rápido e outra em que andamos décadas como crianças num hospital sujeitas a sucessivas dolorosas injecções em que cada uma é supostamente a "última", tenho o pressentimento que escolheríamos a primeira hipótese. A crise também é algo de psicológico que afecta as populações, os empresários, investidores, muitas vezes de forma irracional e que depois provoca uma espiral ainda mais depressiva. Trata-se de uma situação de desgaste prolongado, potenciada  pela ausência de luz credível ao fundo do túnel, pela falta de esperança. Este desânimo é agravado pelas "lideranças" europeias que fazem precisamente o oposto do que deveriam: decidem e negociam em segredo entre si, com os credores, FMI e banca e, aos seus eleitores, a quem na verdade têm de prestar contas, atiram um discurso de fachada e ou demagogia.

terça-feira, 16 de abril de 2013

chipre

O exemplo do Chipre é positivo. A solução encontrada, na opinião de tantos políticos portugueses, Cavaco Silva à cabeça, tocou num suposto "princípio sagrado": o dinheiro que se tem no banco. É curioso este conceito. Não há problema em cortarem-nos um terço do salário pela via dos impostos, mas já o dinheiro no banco, é uma coisa completamente diferente e sagrada! Podemos acabar um ano com menos 5, ou 10 mil euros na conta, mas se fossem lá directamente tirar 1 euro, ui. É claro que é a solução que menos interessa a quem tem grande património e a que menos interessa à própria banca.

Não é mais "limpo" fazer um haircut nos depósitos dos dois bancos cipriotas envolvidos no problema? Não é mais limpo rapar também 60% dos depósitos de investidores russos que procuraram fugir do controlo do governo russo e dos impostos russos e que eles paguem também parte da factura, em vez de serem todos os contribuintes cipriotas a pagar? Ou mesmo russos? Não fez bem o governo russo em recusar auxílio aos "empresários" russos nesta matéria? Devemos nós ter pena da banca portuguesa que com isto teve 1,8 mil milhões de euros em perdas? E se fossem 50 mil milhões? Já devíamos socorrer os bancos para evitar a sua falência? Qual é o montante a partir do qual o estado deve assumir as perdas dos bancos? Não é menos recessivo cortar dinheiro estacionado em bancos, penalizando sobretudo grandes depositantes? Quantos portugueses têm mais de 100 mil euros num banco? E os que têm, perdiam grande nível de vida se perdessem 40% do montante superior a 100 mil euros numa conta? É preferível ir buscar o mesmo dinheiro pela via do aumento de impostos e redução de salários a todos os portugueses, mesmo os desgraçados que não só não conseguem poupar um euro como estão asfixiados por créditos contraídos?

E já agora, a propósito da transparência que não existe no sector bancário e que não consta da lista de preocupações do FMI de que falo no post anterior, deixo só aqui uma lista dos prémios de excelência que o Banco do Chipre (RIP) recebeu nos últimos anos:
Feb 25 2011 - The Banker magazine ranked the Bank of Cyprus amongst the leading banks of the world.

Apr 4 2011 - The prestigious Global Finance financial magazine honours the Bank of Cyprus with the title of Best Bank in Cyprus.

Jun 15 2011 - The Bank of Cyprus has succeeded in being included in the category of «Best Banking Organizations» worldwide at the annual World Finance Banking Awards of the internationally acclaimed financial magazine World Finance.

Sept 13 2011 - In the framework of its annual “Awards for Excellence 2011”, the Bank of Cyprus was named Best Bank in Cyprus by the international financial magazine EUROMONEY.

Nov 1 2011 - The Bank of Cyprus was awarded the ‘JP Morgan Chase Quality Recognition Award’ for its funds transfer operations for the eleventh consecutive year.

Dec 1 2011 - The Bank of Cyprus was named “Bank of the year 2011” in Cyprus by the prestigious international financial affairs publication The Banker, during its annual “Bank of the Year Awards 2011.”

Feb 9 2012 - Bank of Cyprus has been named as the Best Bank for Private Banking in Cyprus, by the internationally acclaimed magazine EUROMONEY.

Mar 23 2012 - The international financial magazine ‘Global Finance’ has named the Bank of Cyprus the best banking institution in Cyprus in the Developed Markets category of “World’s Best Banks Awards”.

Sep 26 2012 - Bank of Cyprus has been awarded the ‘2011 Citi Performance Excellence Award’ by the world-renowned financial organization Citibank, for global electronic payments leadership and excellence.

o que faria um gato?


post que vai ser apagado dentro de horas, aproveitem

Volto ao outro problema (o maior) que não abordei no post anterior que entretanto apaguei. Desde a entrada para a moeda única, o limite do deficit foi entrando no debate democrático até o dominar completamente, não só em Portugal, como em toda a europa. Os ministros das finanças, num percurso inverso ao dos ministros da economia, foram ganhando uma preponderância que hoje em dia esmaga a do próprio primeiro ministro. Grosso modo, não se estabelecem objectivos, pelo menos quantificados e muito menos impostos por memorandos ou tratados de união para outros números que não os do deficit, despesa ou receita fiscal. O diálogo europeu resume-se a isso e esta união perdeu o carácter de união política que tinha na sua génese. O crescimento económico, nível e qualidade de vida ou o emprego tornaram-se conceitos abstractos e vagos, subjugados à realidade imposta pela componente das finanças do estado. O debate na última década foca-se no tema onde cortar e onde ganhar receita, muitas vezes à custa de cosmética criminosa (PPPs) ou de receitas extraordinárias (privatizações a preço de saldo) no caso português. Colocou-se a contabilidade do estado e o euro numa espécie de assunto fulcral do espaço mediático, empobrecendo e destruindo a  democracia europeia. Mas para quê? Viu-se que os limites do deficit impostos no tratado monetário foram sendo sucessivamente quebrados por todos os países europeus. A Alemanha quer limites para  o endividamento na Constituição, demonstrando que não aprendeu a lição, pois haverá sempre um José Sócrates disposto a inovar na contabilidade.

É óbvio que deve existir realismo e rigor nas contas, muito especialmente em países que não a Alemanha, se pretendemos uma moeda única comum com alemães. Contudo, é preciso agir sobre o próprio mercado financeiro ou, mais exactamente, deixar de agir sobre o mercado financeiro desta forma.

 Se o FMI tivesse verdadeiramente inspiração liberal, não incluiria algo como preserve financial sector stability; maintain liquidity and support a balanced and orderly deleveraging in the banking sector no memorando. Incluir isto, para mim, é o mesmo que incluir algo semelhante sobre o sector da restauração ou construção naval. Há uma coisa que se pode concluir desta crise: o modelo de negócio dos bancos assentou em práticas erradas e ineficientes, em certos casos, catastróficas. Não faz sentido proteger um sector com empresas  que tomaram más decisões no exercício normal da sua actividade, tão más quanto as dos políticos e privados que se sobre-endividaram nas últimas duas décadas, sem reflectir na essência do problema.

Isto nota-se na percepção que os clientes têm da banca. Os bancos são normalmente indiferenciados para os consumidores. Cada português é cliente de vários bancos. A lealdade é mínima e a decisão fortemente racional. A maior parte escolhe um banco porque tinha a taxa mais vantajosa para o crédito ou porque era o banco da empresa onde trabalha ou porque é o banco mais perto de casa. Uma peça fundamental é a do gestor de conta: quando muda de banco, o cliente vai atrás. Portanto, no sector sofisticadíssimo da banca que o FMI quer preservar, a única coisa que distingue bancos é se somos bem atendidos por um tipo que se lembra do aniversário do nosso filho e faz um jeitinho na taxa ou se está perto de casa ou do trabalho. Mesmo em Portugal, o banco mais diferenciado é a CGD, precisamente porque é visto como o "banco do estado" e existe a crença de que é o último a cair e, portanto, o mais seguro, premiando a CGD com uma vantagem que de facto não deriva da qualidade de gestão, de melhores práticas ou pela solidez concreta das suas contas.  No fundo, o modelo de negócio da banca, não evolui para uma verdadeira diferenciação concorrencial em que os piores são eliminados. Não há risco de falência imediata, a não ser em casos extremos, havendo mesmo prémio para os bancos que é mais provável o estado salvar. Com a hipótese de falência, os accionistas dos bancos teriam um forte incentivo para garantir que os mesmos eram bem geridos, cabendo-lhe boa parte da supervisão como parte interessada. 

A diferenciação pela solidez e transparência do banco seria mais relevante para o consumidor e para o accionista. A confiança é um dos principais factores de escolha no mercado financeiro, mas a ausência de possibilidade de falência retirou um incentivo para a diferenciação por esta via. A crise, felizmente, trouxe uma sombra de diferenciação, mas ainda incipiente. Alguma coisa distingue um banco que teria falido se não fosse o estado a injectar dinheiro de outro que não precisou de injecção de capital? Alguém deixou de ser cliente de algum banco e escolheu outro desde a crise, por estes critérios? Não existe a crença de que ou caiem todos ou não cai nenhum?

Os movimentos de capitais no que respeita à confiança, são internacionais. As pessoas colocam o dinheiro na suiça ou em bancos alemães (os russos preferiam o Chipre e deram-se mal). Ou seja, os bancos, os sistemas bancários ou financeiros estão indissociados dos respectivos estados, o que é prova que a maior diferenciação não resulta da gestão de um banco em particular, mas de um contexto fiscal, financeiro, monetário específico de uma nação. Falamos em bancos suíços, franceses ou bancos alemães, e não no banco A, B ou C como em qualquer outro sector. É como se o sistema financeiro estivesse num limbo: é o mais interligado e globalizado de todos os sectores, com transferências e operações à velocidade da luz, mas por outro lado, um banco espanhol é um banco espanhol e um banco alemão é um banco alemão e a confiança nos mesmos está intimamente associada à confiança "no país". Com a adesão ao Euro, Portugal e outros países ganharam uma súbita credibilidade internacional e tiveram acesso a muito mais financiamento a juros acessíveis do que nas suas moedas antigas, uma vez que havia a percepção de que era impossível um país do Euro não pagar as suas dívidas, facto repetido, mesmo durante a crise, pelos principais líderes europeus. Criou-se assim um crescimento artificial e a factura deveria chegar mais tarde ou mais cedo.

Voltando ao início do post: se os contribuintes forem demitidos da obrigação de garantir a estabilidade dos mercados financeiros e a sua liquidez, em troca da possibilidade de falência dos bancos de que são clientes - e isso os responsabilizar mais na escolha do banco e forçar o banco a demonstrar a sua solidez e boas práticas - então pode-se evitar crises desta dimensão e duração e até contornar parte do problema do deficit, uma vez que o tempo tratará de impor mais estabilidade e tomadas de decisão mais conservadoras, eliminando parte da incerteza e volatilidade do sistema financeiro actual. Por um lado, se um banco empresta dinheiro ao João Jardim para que João Jardim faça os jogos olímpicos de inverno numa montanha de neve artificial, os accionistas e depositantes podem não gostar dessa atitude e escolher outro banco que não o faça. O banco alemão que empresa dinheiro ao banco português pode também decidir fechar a torneira. Por outro lado, os governantes podem ter mais incentivos a demonstrar a transparência e boa saúde das suas contas, pois de outro modo terão dificuldades acrescidas em financiar-se a taxas razoáveis ou mesmo a ser eleitos, visto que os eleitores estarão mais alerta para estes temas, uma vez que podem perder parte das poupanças. Se um país / autarquia corre o risco de ser insolvente, não se conseguirá financiar a não ser por instituições financeiras e investidores que estejam, conscientemente, a aceitar o risco real de não verem o dinheiro de volta, uma vez que os seus cidadãos não assumirão "qualquer dívida" a qualquer preço. Não tenho dúvidas que só responsabilizando por inteiro os clientes da banca (nações, privados), quer os bancos e investidores, se pode resolver o problema.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

erase and rewind

Como os mais atentos repararam, havia aqui um post sobre coisas da crise e troikas que entretanto apaguei. Fiquem sabendo que o original tinha o dobro do tamanho (havia uma segunda parte e tudo). Agradeço à a.i. e à Pipoca Mais Picante os comentários. Às vezes tenho de escrever certas coisas por impulso e depois acho-as bastante incompletas e fico a remoer na cabeça e volto aqui e faço correcções e não saio disto. Não é que ache os textos maus ou discorde de mim mesmo passado cinco segundos, o que se passa é que eu próprio às vezes não sei muito bem o que penso e utilizo os textos para lá chegar. Ainda há pedaço (gosto desta expressão de familiares meus algarvios) dizia a uma pessoa que não gramo o António Costa e fui procurar um texto meu para o comprovar. De facto, o meu texto era crítico, mas resumia-se à sua irrelevante participação na Quadratura do Círculo e começava por dizer que "eu até gosto do António Costa" ou uma merda assim, o que só prova que as coisas cá na cabeça se vão construindo pelos sentidos e destruindo pela cerveja, num permanente processo iterativo.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

sacrifícios


O México tem a particularidade de ter uma civilização extremamente avançada aquando da sua colonização, mesmo que a civilização estivesse em decadência. Os EUA ou o Brasil são o resultado de uma enorme misturada na qual as civilizações (?) indígenas têm um peso quase nulo. O que há de índio no americano actual? No México, pelo menos nas regiões do Yucatan e Quintana Roo, a herança maia está por todo lado. Para além dos milhares de vestígios arqueológicos, dos quais se destacam Tulum e Chichen Itza, a própria fisionomia dos habitantes locais é diferente de outras regiões do méxico, são mais "índios", por assim dizer. Explicaram que 3 milhões ainda vivem na selva, em auto-subsistência e pude confirmar isto na auto-estrada: pequenos acampamentos de barracas no meio da selva, com torres de vigia. As placas na estrada têm nomes como xel ha, tulum ou xcaret. O folclore, crenças e artesanato actual têm evidentes ligações com a cultura olmeque, maia ou azteca e ser-me-ia necessário um estudo mais aprofundado para identificar como e onde, esforço que está fora do âmbito deste post e da minha preguiça natural. Faço essa dedução porque não há absolutamente nada de ocidental na forma como os mexicanos fazem o seu culto dos mortos.

Tirei a foto acima nas ruínas da cidade maia de Tulum. É apenas uma das muitas edificações do gigantesco complexo arqueológico. Chama-se "casa del cenote" porque está construída por cima de uma caverna (cenote) que, na estação das chuvas, se enche de água. Por acaso, ouvi um guia explicar ao seu grupo que no seu interior se faziam sacrifícios, especialmente de crianças, cumprindo a mesma função do Cenote Sagrado de Chichen Itza. No livro Uma História da Guerra de John Keegan há vários capítulos dedicados aos maias e aos seus violentos e macabros rituais e é mais ou menos facto de cultura geral que os maias faziam rituais deste tipo.

No entanto, não vi uma única vez, em representações ou guias oficiais (impressos), referências a este facto ou costume. No parque de Xcaret, que constitui uma espécie de recriação do méxico em formato um pouco kitch para consumo interno e externo (uma espécie de Pavilhão de Portugal permanente e bem mais giro) existem encenações da vida maia. Mostram o jogo de futebol a golpes de anca, o hóquei com bolas de fogo, a guerra com Cortez, rituais... mas de sacrifícios humanos, nada. Mesmo num dos muitos guias oficiais que adquiri à entrada, não há qualquer referência sobre os mesmos. É certo que os maias não eram tão "sacrificadores" como os aztecas, mas mesmo assim há inúmeros registos arqueológicos que provam a regularidade dessa prática.

No espectáculo apoteótico que todas as noites enche este pavilhão no Xcaret...



 ... os maias são revisitados à luz do politicamente correcto actual formato kitch: união entre os povos (há mesmo uma cena em que um maia e um espanhol, depois da batalha, se entendem pela via da música, fazendo um dueto), ecologia, união com a terra e a natureza etc.. O espectáculo é frequentado sobretudo por mexicanos que vêm de outras partes do país e há muitas crianças. Compreendo que não façam uma encenação gráfica de rituais macabros e que a violência dos combates seja teatralizada para poder ser consumida por todas as idades e sensibilidades. Portugal não fez diferente nas suas celebrações aquando da expo 98, no espectáculo do pavilhão atlântico (não me recordo de ver escravos agrilhoados no porão das naus). Registei o cuidado com que Cortez é retratado! Não é um sanguinário traiçoeiro, mas sim um grande conquistador. No espectáculo, a vinda dos espanhóis é tratada como uma etapa natural da história da cultura mexicana, como algo tão neutro como um acontecimento meteorológico. Não detectei qualquer traço de ressentimento na encenação, o que talvez ofendesse a grande proporção de espanhóis entre os turistas. Não sei de todo se isto representa o sentimento mexicano face aos espanhóis, mas pareceu-me que seria complicado uma encenação semelhante feita por brasileiros ou africanos sobre a vinda dos portugueses, por exemplo... Haveria quase de certeza um sentimento de decadência de um paraíso intocado até então.

Se no âmbito de um espectáculo para consumo turístico compreendo a ausência de referências aos sacrifícios, escapa-me o motivo pelo qual na documentação das ruínas de tulum e nos guias que se podem adquirir à entrada, destinados ao turista interessado, tudo isso esteja ausente. Até porque é algo de atraente, digamos assim, que exerce um fascínio mórbido a ruínas que de outro modo poderiam ser desinteressantes. Saber que estamos perante um bloco de pedra onde foram arrancados corações ainda a bater, é diferente de saber que a mesma pedra era apenas usada para moer cereais. Ao contrário de Auschwitz, da Inquisição ou da colonização, é um passado totalmente neutro e distante. Ninguém julgaria os mexicanos actuais pelas práticas do passado. Ficamos pois com a sensação de que por vezes se revela mais no que se esconde do que no que se mostra. Eles gostam dos seus maias, de fiesta e tequilla. É preciso dizer que o espectáculo termina com uma hora de concerto em que participam Tony Carreiras e Marco Paulos  mexicanos.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

este post

Este post é só para quebrar o enguiço, depois há de vir charters de posts.Nunca estive tanto tempo sem escrever e sem tocar num computador e sem internet (desde que foi inventada). E realmente, faz a diferença. Uma pessoa larga essas coisas e logo nada com barracudas, golfinhos e tartarugas no mar das caraíbas. Tomei nota. Tentei ler a poesia do Borges na excelente chaise longe, uma poesia bem regada com margaritase mojitos. Não deu. O Borges ama e respira a literatura, eu gosto de quesadillas, tequilla e barracudas. Vários parágrafos de contos do Nabokov deram-me vontade de chorar. Não foi nem um nem dois. É impressionante, o gajo. Dava para muitos posts. Na volta, ainda passei por Madrid e fui ao paraíso do jamon, e depois voltei a Portugal e dei uma vista de olhos pelas notícias. Meu Deus, é só sair daqui uns dias e é isto, o caos completo. Não me ocorre nada de inteligente para dizer, chega.