sábado, 9 de julho de 2011

o início

O meu pai discutia sozinho se devia parar o carro na próxima bomba de gasolina ou se devia continuar mais uns quilómetros. A minha mãe tinha o mapa Michelin aberto e tentava descobrir onde estávamos mas o meu pai disse-lhe que ela tinha o mapa ao contrário e a minha mãe disse-lhe que não. O meu pai tinha um papel preso com fita-cola no tablier do Peugeot 504 com uma lista de cidades e as horas a que devíamos passar por elas e irritava-se se estivessemos atrasados.
O meu pai insistia que a minha mãe tinha o mapa ao contrário e a minha mãe dizia que não, que uma autoestrada às vezes passa ao lado das cidades e por isso é difícil perceber onde se está. Eu disse que tinha vontade de fazer chichi e o meu pai disse-me para aguentar mas a minha mãe disse que também tinha vontade de fazer chichi e parámos na bomba de gasolina com o meu pai a corrigir as horas no papel do tablier, muito enervado.
A minha mãe parecia muito contente de ir para Portugal porque havia sol lá e na Bélgica não havia sol. Eu não gostava de chuva e não gostava de neve. Naquele ano tínhamos passado um Natal na floresta das Ardenas, os meus pais, as duas irmãs da minha mãe e amigos. Havia muita neve e frio e por isso não foi bom. A neve é fria e molhada e depois queremos andar e enterramo-nos até aos joelhos e o pai tem de nos pôr às cavalitas. O meu pai era alto e eu sentia-me tonto e sempre a cair quando andava às cavalitas dele, mas era melhor do que enterrar-me todo na neve e ficar para trás nos passeios. Às vezes o meu pai esquecia-se que eu estava às cavalitas dele e passava por debaixo de ramos cheios de neve e eu chocava com a cara nos ramos e a neve caía-nos toda em cima. O meu pai ralhava comigo como se a culpa fosse minha e punha-me no chão e eu enterrava-me todo outra vez.
O meu pai também não gostava muito de neve porque para além de lhe cair em cima quando eu estava às cavalitas dele, não podia pescar quando o rio estava gelado. Passava muito tempo na cozinha do grande chalé porque os amigos da minha mãe eram contra a televisão e riam de forma desagradável quando o meu pai queria ver o Benfica a jogar na Taça dos Campeões Europeus. O meu pai dizia que os amigos da minha mãe eram os ‘intelectuais da merda’ e era ele que cozinhava coisas enquanto os intelectuais da merda discutiam filosofia e política à lareira e fumavam muito e não percebiam de futebol. A minha mãe explicou-me que o meu pai dizia muitas asneiras porque tinha estado no exército mas que eu não podia dizer asneiras. Os intelectuais amigos da minha mãe também diziam muitas asneiras só que era em francês, porque não tinham estado no exército. Diziam ‘merde’ muitas vezes: ‘ah merde il neige encore’, ‘merde, mes cigarretes son finies’, ‘ah non hein, merde, encore c'ete stupide telé ’. Tinham grandes barbas e não me ligavam muito. Eu tinha uma pistola de cowboy com fulminantes e corria de um lado para o outro a dar tiros.
O Jean Michel era um intelectual e parecia o John Lennon. Andava sempre com uma máquina fotográfica e tirava fotografias sem parar. Depois revelava as fotografia. Lia muito concentrado num grande cadeirão, coçando a barba e ajeitando os óculos redondos que lhe caíam para o nariz. Falava muito pouco e eu até gostava dele porque estava sempre a sorrir sozinho e a olhar para as coisas embasbacado.
Uma vez quis brincar com ele e aproximei-me por trás porque ele era um índio, só que ele não sabia que era um índio e dei-lhe um tiro com a pistola mesmo ao pé dos ouvidos e ele assustou-se muito e ficou com dificuldades em respirar. A minha mãe tirou-me a pistola e ralhou mas o meu pai deu-me uns bocados de toucinho na cozinha.

6 comentários:

Anónimo disse...

Quem és tu? Quero conhecer-te! LOL

Rita

Rebeubeu disse...

Tá tudo explicado!

Sãozinha disse...

A mim é que me falta o ar. Brilhante!

Jibóia Cega disse...

Mas viveste mesmo na Bélgica ou foi apenas o teu espírito?

CoisasDaGaja disse...

Ah! Gostei tanto! Real ou não é indiferente. Para mim foi real! Consegui criar o cenário de toda a "história" e isso meu caro, nem todos os textos conseguem!

Obrigada pela "viagem" ;)

Anónimo disse...

Adorei!