Depois de nos instalarmos na aldeia, começaram as obras. O meu pai queria aproveitar o sotão da sala principal para fazer um quarto e assim mandaram abaixo o telhado e o tecto da sala. O chão estava coberto de plásticos para proteger o soalho de madeira enquanto uma equipa de pedreiros escavacava tudo. Era muito engraçado sair do quarto e a caminho da cozinha ter uma sala sem tecto nem telhado. Via-se o céu azul ou estrelado, dependendo de ser de dia ou de noite.
Insisti com os meus pais para deixarmos a sala assim e a minha mãe até achou boa ideia porque podia ser um pátio interior mas o meu pai disse que ela estava maluca.
As obras tiveram de parar uns dias porque começou a chover muito e realmente era pouco prático, especialmente à noite quando queríamos ir de pijama e chinelos do quarto à casa de banho e tínhamos de passar por ali e ensopar os chinelos dos coelhos. Para além de um novo quarto para os meus pais, contruíram outra sala que seria o meu quarto e ainda uma casinha encostada à nossa casa, com um forno de lenha. Passou a ser 'a casa do forno' e tinha um grande terraço no telhado e podia-se ver muito longe. O meu pai usou o forno umas duas vezes para cozer pão, não era muito prático porque o fumo vinha para dentro e ele saía de lá todo farrusco a tossir e com os olhos vermelhos, mas ficou casa do forno na mesma porque como não tinha telhado mas sim um terraço, aquecia muito quando batia o sol e era impossível estar lá dentro.
Descobri que tinha medo de aranhas mais ou menos nessa altura. A minha mãe tinha muito medo de aranhas e fez com que eu também tivesse medo de aranhas. No campo havia muito mais aranhas do que na Bélgica. Acho que na Bélgica só vira uma vez uma em casa da minha avó, na banheira e também no museu de história natural em que havia tarântulas vivas dentro de uma gaiola de vidro. O meu pai dizia que de vez em quando fugia uma e podia estar em qualquer parte de Bruxelas e depois a minha mãe ralhava com ele, nem era por me assustar mas porque a assustava a ela.
Mas ali no campo era todos os dias. Com as obras no sotão e o destruir do telhado e madeiras, elas fugiam para as outras divisões da casa e todas as noites havia uma aranha gorda e peluda num canto do tecto do meu quarto. As tábuas do tecto eram escuras e só mesmo olhando com muita atenção podia aperceber-me que lá estava uma à espreita e depois gritava muito a pedir ajuda.
A minha mãe vinha ver o que se passava e não ajudava porque às vezes até se recusava a entrar no quarto e eu ficava deitado na cama a pedir-lhe para que viesse para o pé de mim.
-- Je vais apeler papa! -- e partia a correr.
E deixava-me ali a tremer, escondido nos lençois com o Snoopy que gozava comigo porque ele não tinha medo das aranhas. O meu pai vinha e já se sabia que antes de me ajudar iria fazer parelha com o Snoopy e gozar muito comigo e com a minha mãe.
Não levava a tarefa de matar a aranha suficientemente a sério e eu e a minha mãe dávamos instruções:
-- Non! Não uses o vassouro, merde, vai antes buscar o de plástico ou o esfregone!
-- Não lhe dês só um toque que ela cai para trás da biblioteca e depois desaparece!
-- Dá-lhe com força! Não a deixes fugir!
--Encore! Encore!
As aranhas ficavam imóveis à espera mas quando a vassoura se aproximava começavam-se a mexer e eu arrepiava-me todo e a minha mãe magoava-me com as unhas espetadas no meu braço. Quando o meu pai não estava em casa ou não tinha paciência para vir resolver o problema, a minha mãe usava insecticidas. A pontava à aranha de muito longe e gastava quase meia lata a fazer fssssss e a fugir e depois a fazer fsssst outra vez e a fugir.
As aranhas nunca morriam logo, começavam a andar e a tossir e quando o faziam a minha mãe afastava-se mais e soltava pequenos gritos e eu ficava com a impressão que se a aranha avançasse para mim ela fugia e não dava a vida por mim, como nos filmes.
Finalmente as aranhas caíam no chão mas continuavam a andar aos tropeções. Quando aquilo acabava eu ficava com uma nuvem tóxica no quarto.
Nas noites em que as aranhas me deixavam em paz, havia sempre uma centopeia de pelo menos dez centímetros. Quando vi uma pela primeira vez abri o meu livro dos dinossauros, havia uns fósseis parecidos com elas.
Para me sossegar e ajudar a adormecer depois de um avistamento de aranha, a minha mãe contava-me aldrabices. Dizia que não havia mais de uma aranha por sala, que se tinham morto aquela não haveria mais nenhuma, que os familiares daquela iriam contar às outras que aquele quarto era perigoso e era melhor não irem para lá, que era só porque tinha chovido ou por causa das obras e que normalmente não teria tantas aranhas e outras coisas do género. O meu pai não ajudava nada, só dizia 'é uma aranha, não faz mal ninguém, até dá cabo das melgas'.
Realmente, havia muitas melgas também. E moscas, havia tantas moscas no pátio e que nos obrigavam a andar sempre com um mata-moscas. Na região havia muitas quintas com porcos e vaquinhas e o meu pai dizia que era disso, as melgas e as moscas nasciam nas águas porcas.
Barravam-me com Tabard e quase que nem conseguia respirar. Apetecia-me dormir debaixo dos lençóis e fechar bem a minha toca para que nem aranhas nem melgas nem centopeias pudessem entrar na cama mas o problema é que passado um bocadinho estava cheio de calor e tinha de respirar. Nessa altura ficava exposto ao perigo mas resistia com muito heroísmo. O meu pai fazia pesca submarina e uma vez tentei usar o tubo da respiração na cama, deixando-o de fora dos lençóis fechados mas não me resolvia o problema do calor e também podia dar-se o caso de um bicho entrar pelo tubo adentro, o que seria mau. Então desistia e punha a cabeça de fora, ao fresco. Não demorava nem dois minutos até começar a ouvir o zzz de uma melga nos meus ouvidos. Tentava adivinhar onde elas estavam e dava grandes estaladas na minha cara e por vezes, no dia seguinte, ainda tinha as marcas das porradas que me dava e depois a minha mãe explicava na à dona Célia da creche que eu é que me tinha feito aquilo à cara. Também acendia a luz e tentava caçá-las mas era muito difícil porque o tecto era muito escuro e quando elas pousavam no tecto eu não as conseguia ver.
Como se não bastasse, toda esta inquietação dava-me pesadelos muito reais com aranhas a prender-me em teias e melgas a sugarem-me todo o sangue e não se pode dizer que dormisse descansado naquele tempo.
2 comentários:
Adorei, outra vez. na minha modestíssima opinião, tens aqui material pra um livro pelo menos divertido, e que falta faz um livro divertido...
bjo, da miúda de sao paulo, que de miúda tem bem pouco...
"Non! Não uses o vassouro, merde, vai antes buscar o de plástico ou o esfregone!"
Como portuguesa recentemente a morar em França esta parte assustou-me verdadeiramente...
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