quarta-feira, 8 de maio de 2013

é apenas uma questão de ter fé na própria loucura


(...)


Comi as papas de aveia, mastigando cuidadosamente para mexer a cara o menos possível. Quase não posso abrir a boca, mas como não sou do tipo de pessoa de falar sozinho ou de mexer os lábios enquanto leio, o único problema é mesmo comer. Para passar tempo, contemplei um pouco  o recorte da fotografia da rapariga, muito séria, a falar para microfones. A sua postura, o olhar como se fosse para uma grande plateia, tudo aquilo tinha muita convicção, muito dramatismo. Arrumei a foto debaixo da almofada e fiquei assim na cama, sentado de pernas cruzadas, encostado à parede. Desde o enxerto de porrada de porrada do Martim no interrogatório que decidi mimar-me um pouco, ser menos severo comigo. Assim, em vez de me preocupar com o quadrado de luz da janela que se arrasta lentamente pelo chão e paredes ou em reservar a cama para dormir, optei por esquecer tudo isso e aproveitar para descansar no colchão sempre que me apeteça. Ademais, o calor do sol faz-me latejar a cara dorida. E ainda por cima, sinto-me deprimido com a minha situação em geral. Um sem fim de problemas e contrariedades, ao fim e ao cabo. Que porra, que depressão. Desculpem. Começo a ter saudades dos tempos em que não estava numa cela. O meu escritório não era nada mau, comparado com certos aspectos da minha situação actual. O que um bom enxerto não faz a uma pessoa. E ainda dizem que não se deve bater nas crianças ou nos cães... Tudo isto relativiza um pouco os problemas, pelo menos podemos retirar lições da desgraça. Lembro-me de uma manhã em que o meu computador crashou umas três ou quatro vezes e, enquanto esperava pelo restart e ouvia o ruminar da Alexandra a propósito do sistema operativo da Apple que era infinitamente superior ao Windows e que o Observatório devia dar McBooks a todos, tive um pequeno acesso de fúria. Não, não atirei mesas pelo ar. Primeiro, nem se manifestou no exterior do corpo, ficou cá dentro, a borbulhar. Mas criou tanta pressão que às tantas tive de me mexer e bati com o rato do computador na mesa, algumas vezes, mas com pouca força para não o partir. E tive cuidado de o fazer em cima do tapete fofinho, um brinde da TMN.

Serei uma pessoa intrinsecamente violenta? Não foi a primeira vez que descarreguei num rato, mas dessa vez tive mais cuidado que da primeira. Da primeira vez parti o rato todo e tive a Sílvia do economato e o departamento de informática à perna durante semanas, à procura de uma justificação. Não lhes cabia na cabeça que eu tivesse partido material informático, assim de propósito, era pior do que o ter roubado como, de resto, todos faziam. Deram-me um velho rato de mil novecentos e noventa e três, uma relíquia de museu. Tinha sarro fossilizado e foi preciso remover a bolinha do rato e limpá-lo com um xis acto que também tive de pedir à Sílvia do Economato. Mas era um bom rato, sólido, fiável, podia bater com ele na mesa, não era como os modernos ratos ópticos que inventaram depois e que são demasiado leves e frágeis. Devo mesmo ser um pouco nervoso, agora que penso nisso, batia com o rato tanta vez no tapete… O escritório estava sempre gelado pelo ar condicionado e café no copinho de plástico arrefecia em dois tempos. Era preciso bebê-lo depressa ou já não valia a pena e eu batia com o rato, frustrado de ter de ir buscar outro e fazer mais um risquinho na folha de contabilização dos cafés que tinham posto na copa para evitar abusos, quando todos sabíamos que o responsável era o segurança que, à noite, consumia umas dez cápsulas, para além de se masturbar no WC das mulheres. A minha colega Sara, a que tinha o chefe apaixonado por ela, atravessava uma menopausa fulgurante e era acometida de calores que a faziam impor um clima siberiano no escritório. Se alguém se atrevesse a desligá-lo ou subir a temperatura numa das suas frequentes idas ao WC, era pessoa para gritar ‘foda-se, quem é que mexeu no ar!?’ com tanta raiva e mágoa à mistura que todo o escritório ficava em silêncio e raramente o responsável se acusava. Em silêncio e consternação, víamos a Sara regular de novo o ar condicionado nos 10º polar ártico, turbo fan e sweep mode. Os que estavam na zona de influência daquele ar condicionado, sofriam. A Rita, uma das três administrativas do piso, ajeitava a manta nos ombros, a Sílvia do economato espirrava e assoava-se e o Manuel...  o Manuel via-se que queria protestar mas não o fazia, só demonstrava que queria protestar, mas de maneira a que a Sara não percebesse porque os dois davam-se muito mal e ele tinha medo dela. Aliás, ninguém se dava bem com eles, excepto o chefe que estava apaixonado pela Sara. E simpatizaram com o Manuel na fase da ginástica. Mas depois ele foi o primeiro a fartar-se dos exercícios e desmotivou toda gente, então toda gente lhe reservava ressentimento por ter sido o primeiro a desistir.

É complexo e delicado, um ecossistema de escritório. As saudades de um bom café. De um bom rato sobre um tapete confortável para se poder bater nele quanto as janelas do browser encravam e o computador crasha, de ler os jornais desportivos do dia na Internet… Agora só tenho uma rapariga numa fotografia e um texto sobre antioxidantes no verso.

Então, ouvi psst, psst da janela da prisão. Ainda não tinham orientado a câmara de vigilância para a janela.

─ Psst! Chega aqui ó!

Levantei-me e aproximei-me, arrastando o pequeno cobertor puído. A luz da janela ofuscava-me e a contra-luz vi a silhueta de duas pequenas orelhas a assomar de uma cabeça felpuda. Os meus olhos adaptaram-se à claridade. Reconheci o Guaxinim Neurótico. Estava agarrado às grades com as pequenas patas cheias de pelo cinzento e branco todo hirsuto e enfiava o focinho para conseguir espreitar melhor para dentro da cela. 
 (...)

8 comentários:

Peppy Miller disse...

é um excerto do teu livro?
em pulgas pá!!

Palmier Encoberto disse...

Oh Yes! Love it!

Anónimo disse...

Ehhh...
R.

Anónimo disse...

a pergunta que se impõe:
o colchão está na cama ou no chão?

Tolan disse...

aahahaah

MDRoque disse...

Oh rato de escritório, para quando , ã, ã, ã ?????

Tolan disse...

isto aqui são esboços do 2º romance que O Autor está a fazer. Pediu-me para colocar aqui antes que os apague, a ver mostra serviço e sossega as pessoas.

Cuca, a Pirata disse...

Lá está, marketing!!! e do bom.