quinta-feira, 11 de abril de 2013

sacrifícios


O México tem a particularidade de ter uma civilização extremamente avançada aquando da sua colonização, mesmo que a civilização estivesse em decadência. Os EUA ou o Brasil são o resultado de uma enorme misturada na qual as civilizações (?) indígenas têm um peso quase nulo. O que há de índio no americano actual? No México, pelo menos nas regiões do Yucatan e Quintana Roo, a herança maia está por todo lado. Para além dos milhares de vestígios arqueológicos, dos quais se destacam Tulum e Chichen Itza, a própria fisionomia dos habitantes locais é diferente de outras regiões do méxico, são mais "índios", por assim dizer. Explicaram que 3 milhões ainda vivem na selva, em auto-subsistência e pude confirmar isto na auto-estrada: pequenos acampamentos de barracas no meio da selva, com torres de vigia. As placas na estrada têm nomes como xel ha, tulum ou xcaret. O folclore, crenças e artesanato actual têm evidentes ligações com a cultura olmeque, maia ou azteca e ser-me-ia necessário um estudo mais aprofundado para identificar como e onde, esforço que está fora do âmbito deste post e da minha preguiça natural. Faço essa dedução porque não há absolutamente nada de ocidental na forma como os mexicanos fazem o seu culto dos mortos.

Tirei a foto acima nas ruínas da cidade maia de Tulum. É apenas uma das muitas edificações do gigantesco complexo arqueológico. Chama-se "casa del cenote" porque está construída por cima de uma caverna (cenote) que, na estação das chuvas, se enche de água. Por acaso, ouvi um guia explicar ao seu grupo que no seu interior se faziam sacrifícios, especialmente de crianças, cumprindo a mesma função do Cenote Sagrado de Chichen Itza. No livro Uma História da Guerra de John Keegan há vários capítulos dedicados aos maias e aos seus violentos e macabros rituais e é mais ou menos facto de cultura geral que os maias faziam rituais deste tipo.

No entanto, não vi uma única vez, em representações ou guias oficiais (impressos), referências a este facto ou costume. No parque de Xcaret, que constitui uma espécie de recriação do méxico em formato um pouco kitch para consumo interno e externo (uma espécie de Pavilhão de Portugal permanente e bem mais giro) existem encenações da vida maia. Mostram o jogo de futebol a golpes de anca, o hóquei com bolas de fogo, a guerra com Cortez, rituais... mas de sacrifícios humanos, nada. Mesmo num dos muitos guias oficiais que adquiri à entrada, não há qualquer referência sobre os mesmos. É certo que os maias não eram tão "sacrificadores" como os aztecas, mas mesmo assim há inúmeros registos arqueológicos que provam a regularidade dessa prática.

No espectáculo apoteótico que todas as noites enche este pavilhão no Xcaret...



 ... os maias são revisitados à luz do politicamente correcto actual formato kitch: união entre os povos (há mesmo uma cena em que um maia e um espanhol, depois da batalha, se entendem pela via da música, fazendo um dueto), ecologia, união com a terra e a natureza etc.. O espectáculo é frequentado sobretudo por mexicanos que vêm de outras partes do país e há muitas crianças. Compreendo que não façam uma encenação gráfica de rituais macabros e que a violência dos combates seja teatralizada para poder ser consumida por todas as idades e sensibilidades. Portugal não fez diferente nas suas celebrações aquando da expo 98, no espectáculo do pavilhão atlântico (não me recordo de ver escravos agrilhoados no porão das naus). Registei o cuidado com que Cortez é retratado! Não é um sanguinário traiçoeiro, mas sim um grande conquistador. No espectáculo, a vinda dos espanhóis é tratada como uma etapa natural da história da cultura mexicana, como algo tão neutro como um acontecimento meteorológico. Não detectei qualquer traço de ressentimento na encenação, o que talvez ofendesse a grande proporção de espanhóis entre os turistas. Não sei de todo se isto representa o sentimento mexicano face aos espanhóis, mas pareceu-me que seria complicado uma encenação semelhante feita por brasileiros ou africanos sobre a vinda dos portugueses, por exemplo... Haveria quase de certeza um sentimento de decadência de um paraíso intocado até então.

Se no âmbito de um espectáculo para consumo turístico compreendo a ausência de referências aos sacrifícios, escapa-me o motivo pelo qual na documentação das ruínas de tulum e nos guias que se podem adquirir à entrada, destinados ao turista interessado, tudo isso esteja ausente. Até porque é algo de atraente, digamos assim, que exerce um fascínio mórbido a ruínas que de outro modo poderiam ser desinteressantes. Saber que estamos perante um bloco de pedra onde foram arrancados corações ainda a bater, é diferente de saber que a mesma pedra era apenas usada para moer cereais. Ao contrário de Auschwitz, da Inquisição ou da colonização, é um passado totalmente neutro e distante. Ninguém julgaria os mexicanos actuais pelas práticas do passado. Ficamos pois com a sensação de que por vezes se revela mais no que se esconde do que no que se mostra. Eles gostam dos seus maias, de fiesta e tequilla. É preciso dizer que o espectáculo termina com uma hora de concerto em que participam Tony Carreiras e Marco Paulos  mexicanos.

7 comentários:

jj.amarante disse...

"Ao contrário de Auschwitz, da Inquisição ou da colonização, é um passado totalmente neutro e distante. Ninguém julgaria os mexicanos actuais pelas práticas do passado."

Não estou tão seguro de que esse passado seja tão neutro e distante. A Inquisição em Espanha começou por volta de 1500, sendo portanto praticamente contemporânea dos sacrifícios rituais dos Aztecas e dos Incas. É uma característica dessas civilizações de que não vejo grande motivo para orgulho, vendo motivo para algum embaraço. E os sacrifícios acabaram mais pela chegada dos espanhóis do que por uma evolução própria dessas civilizações.

Tolan disse...

Tem razão, pensei nisso enquanto fazia os ovos mexidos do almoço. De facto, a nós parece-nos neutro, para eles não deve ser.

MDRoque disse...

Os pré-colombianos têm uma aura de mistério e de fascínio . A tua semana carbeña deve ter sido fantástica. Um paraíso a três. :)

joana vasconcelos disse...

Também vi esse espectáculo *

Isa disse...

não li o post todo, mas tou feliz que estejas de volta. só te digo que os EUA e o Brasil não têm nada a ver um com o outro no quesito raças. O brasileiro é um povo misturado, desde que os portugueses chegaram aqui e tiveram a feliz ideia de transar com as índias primeiro e as negras depois. Enquanto que aqui toda a gente se mistura, pq é misturada, miscigenada, na América continuam segregados, em colónias, por exemplo. São Paulo é o melhor exemplo disso, é ver japinhas, negros,
indios, europeus de vários países, do leste incluído, asiáticos, sul americanos, o diabo tudo amigo, tudo misturado. o que muda é a condição social de cada um e o acesso que cada um tem às coisas.
Bjos

Anónimo disse...

Não terás tu visitado o «Algarve» lá do sítio?
Ao contrário de Auschwitz, da Inquisição ou da colonização
E sobre o comunismo? Curioso. A Inquisição em números não chegou às guerras "ateias"... não sei o porquê de uma ter relevância e a outra não. O Comunismo tem essa complacência. As sucessivas vagas/massacres de fome e violência que ocorrem ainda neste século (e no outro) não contam. Mas a Inquisição conta.
Enfim. Bom regresso.
R.

Jorge Salema disse...

Interessante este post. As observações sobre a representação da História dariam bom mote para um exercicio longo e profundo. O assunto é muito complexo e pleno de significado. É um sintoma - como se diz - de uma realidade presente. Concordo que talvez o público alvo, a sua sensibilidade e capacidade de apreender a mensagem tenham sido factores sensíveis e condicionantes.

Faltaria dizer que entidade organizava a expo e o espetáculo. Se foi uma municipalidade, um governo local ou central e - muito importante- se o turismo é uma fonte de receita determinante na região.

Boa referência a Keegan. Fez-me voltar lá. Retirei da estante e voltei a folhear a secção referente aos Astecas. Fica a nota * para quem quiser ler.

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* Cf. Keegan, Uma história da Guerra, Edições Tinta da China, Lisboa, 2006 PP. 151- 162