quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

metro


Biiip biip todos a bordo! ─ penso, enquanto o metro arranca para mais uma divertida viagem pelos subterrâneos de Lisboa. Olho em volta à procura de quem partilhe comigo a alegria, mas todos parecem absortos nos restos de sonhos a que foram arrancados por cruéis despertadores e o meu entusiasmo esbarra em rostos ensonados a assomar de cachecóis e roupas espessas.  Se pudessem, vinham de pijama e enrolados no edredon, aposto. Resignado, tento concentrar-me no livro que tenho aberto no meu colo. É-me particularmente complicado desacelerar o ritmo para acompanhar a escrita pausada e contemplativa deste conto no Nabokov. A cada linha, tenho a sensação de me estatelar, como se saísse de uma carruagem em andamento para um cais. Dou-me conta de ler uma página e de não me lembrar de nada. Viro a página e faço a mesma coisa a outra página, despacho muitos livros assim, confiante de que o meu subconsciente está a absorver coisas. Uma velhinha ameaça tombar para cima do senhor de fato que se vai encostando o mais que pode para fugir. Como se tivesse uma mola na espinha, a velhota endireita-se a cada biip biip de nova paragem e o homem de fato respira de alívio mais um bocadinho. Uma rapariga ajeita os fones e escolhe uma música no telemóvel. Dá para perceber quando a música começa: relaxa, encosta-se ao banco e pelo sorriso ténue dá para ver que mergulhou num videoclipe em que todos somos figurantes. Espero que a música seja boa pelo menos, não gostava nada de participar num musical manhoso. Ao meu lado, um homem barrigudo contempla a capa da Bola, a mesma capa, há três estações. Está a adiar o prazer de mergulhar nos detalhes. Lá fora, desfila o túnel escuro, cheio de complicações de sinais luminosos e cabos. Encosto o nariz ao vidro para ver melhor; talvez aviste uma dessas misteriosas ratazanas albinas gigantes de que ouvi falar ou um fantasma de um suicida. Apanho um susto quando um comboio se cruza com o nosso num estrondo súbito de janelas luminosas e vultos. Para onde vão aquelas pessoas? Entretanto acabei o conto sem dar por isso. Mas como? Fui virando as páginas? Um mistério! Dou uma cotovelada de excitação no desgraçado ao meu lado que resfolega ao sair do seu sonho de bola. Pouso o livro aberto nos joelhos, à minha frente, sem lhe tocar, para fazer a experiência. De boca aberta, vejo uma página a virar-se sozinha e depois outra... Alguém está a ver isto? Ninguém parece interessado. É a corrente do ar condicionado por cima de mim, sim, pode ser. Mas para mim, é o fantasma do metro a dizer-me 'esse não presta, passa a outro'.

9 comentários:

Sister V. disse...

Ler este episódio fez-me pensar que nunca consegui deixar um livro a meio. E alguns é por casmurrice que vou passando as páginas.

Anónimo disse...

«Encosto o nariz ao vidro para ver melhor; talvez aviste uma dessas misteriosas ratazanas albinas gigantes de que ouvi falar ou um fantasma de um suicida. Apanho um susto quando um comboio se cruza com o nosso num estrondo súbito de janelas luminosas e vultos.»

eu já vi este "filme" :)

a.i. disse...

Isso também me acontece e tenho sempre sentimentos de culpa: ler uma página inteira, e sei que a li mesmo, os meus olhos passaram por todas as frases, mas o cérebro não reteve nada. Isso acontece-me não com livros maus, mas quando estou distraída a pensar em alguma coisa. estou a ler e a pensar em outra coisa ao mesmo tempo.
Gosto muito de algumas coisas que escreves, com um talento natural para escrever coisas que mais ninguém pensou (como o saramago ou o italo calvino): "absortos nos restos de sonhos a que foram arrancados por cruéis despertadores", "mergulhou num videoclipe em que todos somos figurantes. Espero que a música seja boa pelo menos, não gostava nada de participar num musical manhoso."

Anónimo disse...

Se um livro é mau, não há nada que o possa desculpar.
No metro só viaja gente "feia".

Peppy Miller disse...

sinceramente estou anciosa pelo teu livro, já há muito tempo que não lia algo tão fácil para mim me imaginar lá "dentro"

Anónimo disse...

essa história do cavaleiro andante que cheira as rosas no metro só tem piada uma vez,depois é uma técnica.
-é também por essa razão que os livros em papel se pagam antes de se lerem.

Tolan disse...

não é uma técnica, é um tema. Se me apetecer faço 50 variações de uma viagem no metro, 50 variações de um pequeno-almoço num snack-bar, 50 variações de uma conversa de escritório em torno da máquina do café... não preciso de recorrer a temas excêntricos como a mão do diabo nas finanças ou a existência de um filho de jesus, embora admita perfeitamente que é por esse motivo que certos livros se pagam mais do que outros.

MDRoque disse...

É o que faz ver o mundo com um caleidoscópio no olhar... nem toda a gente consegue...

Anónimo disse...

Eu sou um pouco assim, faço "filmes" de tudo e de todos os locais onde estou. Por isso mesmo é que digo sempre que nunca estou "só". O que não tenho é jeito para os pôr no papel.