quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Cadernos da Casa Morta e Dostoiévski

A principal qualidade literária de Dostoiévski é a forma como parece entender o humano, ou procurar entendê-lo e suscitar a reacção de pois é, as coisas são mesmo assim perante personagens em situações de vida particulares, extremas, ambíguas... De alguma forma, Dostoiévski consegue sempre parecer um homem moderado, que está no meio de extremos e erros, que identifica as injustiças mas nunca se precipita para soluções. Tem tanto de revolucionário como de conservador. Quanto a Dostoiévski, os leitores podem dividir-se entre dois grupos, os que consideram que isto é uma qualidade literária e os que acham isto manipulador ou básico. O certo é que passou quase século e meio e as suas histórias continuam a apelar a um enorme número de leitores, mais do que Gogol, Tchekhov ou Tolstói. E são histórias que, voluntaria ou involuntariamente, levantam na cabeça do mais empedernido leitor, dúvidas como "o que faria eu naquela situação?"

Em José Saramago, um enorme romancista, é notório em certos livros e muito especialmente nas suas memórias, uma espécie de ressentimento de classe que nunca desapareceu, como se no povo, nos oprimidos, não houvesse filhos da puta em barda e os ricos ou nobres nascessem com uma culpa primordial de que se têm de livrar. Isto não inquina aquelas que para mim são as suas grandes obras. Apenas levanto este ponto porque, muitas vezes, vejo Dostoíevski atirado para dentro do grande saco do "realismo" de carácter político e que está na raiz do ódio de muito dos seus detractores que, não raramente, nem sequer o leram.

Os Cadernos da Casa Morta, pelo menos toda a primeira parte, são uma sucessão de perfis de criminosos e dos agentes da ordem e, consequentemente, das noções de moral, da própria sociedade no seu sentido prático e real. A principal conclusão é a de ser tudo um tanto ou quanto absurdo e desafiar as ideias pré-concebidas. Um caso extremo é o da troca de identidades. Por vezes, condenados a crimes graves compram a identidade de outro criminoso que aceita a pena muito mais severa do outro a troco de dinheiro para a vodka. Tanto pode ser muito dinheiro como apenas uns copeques, a personagem em questão aceita a troca porque acha que isso é um ritual e que as coisas são feitas assim e não há nada a fazer. Quando Dostoiévski escreve sobre mujiques ou grilhetas (os prisioneiros), sabe que não está a escrever para este público alvo, mas sim para um leitor alfabetizado, provavelmente urbano, que tem destes universos uma série de ideias pré-concebidas. O segredo do sucesso de Dostoiévski nos dias de hoje, é que essas ideias continuam a ser actuais e relevantes. Um crime é um crime, uma prisão uma prisão. Quando aborda temas como a humilhação a que um guarda de prisão submete os seus prisioneiros, podemos rever nisto uma relação hierárquica no próprio local de trabalho. Ou quando diz que o trabalho não custa, o que custa é a sensação de absurdo desse mesmo trabalho: se um chefe ordenar ao condenado que mova umas pedras de um sítio para o outro e depois de volta ao mesmo sítio, só para o manter ocupado, instala-se um desespero que o pode levar o preso à loucura, enquanto que se sentir na tarefa um propósito e uma recompensa, pode dar tudo de si por mero orgulho e brio. E com isto se descreve numa penada uma grande doença do século XXI do trabalhador de escritório que tem, muitas vezes, uma noção algo difusa do seu papel na grande máquina e uma angústia que não desaparece (quem sou eu? estudei para isto? quero é viajar pelo mundo! quero é ser guarda florestal ou cozinheiro etc.)

Neste pequeno livro, o objectivo parece ser o de voltar humanos do avesso, numa constante surpresa pelo que se descobre, uma surpresa genuína, muito provavelmente biográfica, visto que Dostoiévski esteve preso numa prisão igual e também era, nela, um estrangeiro, uma minoria relativamente fidalga atirada para o meio dos desgraçados. Mas não há aqui moralismo de pacotilha. Um sacana continua a ser um sacana, mas todos têm uma reserva de dignidade, como se os seus actos não os caracterizassem, pelo menos, não no próprio entender. Podem até ter vaidade nas patifarias que cometeram. Os colegas de cela roubam coisas uns aos outros, mesmo aos que neles têm confiança e tudo isso é considerado como que inevitável e ninguém "julga" o outro. É como se fosse um processo automático, como se não pudessem escapar à natureza das coisas. As discussões entre prisioneiros são quase que encenadas, estão zangados, mas não estão bem zangados no fundo. O homem que matou seis pessoas pode parece mais dócil e frágil que um matulão carrancudo e explosivo que se limitou a espancar um superior que o insultou. O que Dostoievski parece querer desarmar são as lógicas de quem, não conhecendo a realidade, emite sobre elas explicações simples para poder continuar a ter as suas coisas bem arrumadas, sejam elas benevolentes demais e idílicas ou então condenatórias e violentas.

Esta atitude é completamente diferente daquela de escritores que tentam humanizar o "povo" e dignificá-lo a todo o custo, muitas vezes em busca de uma consagração comercial ou ética e moral, como se fossem candidatos políticos e não artistas. Lembro-me de um caso, talvez há 9 ou 8 anos, em que vi uma escritora (que entretanto parece ter desaparecido) dizer que escolheu uma caixa de supermercado para protagonista porque uma caixa de supermercado é uma pessoa humana e as pessoas não sabem disto, ela passava na caixa e sentiu-se culpada, que aquela criatura tinha sonhos também etc.  Independentemente da eventual qualidade de um escritor que se predisponha a este exercício masturbatório, sabemos que está longe de Dostoiévski se não conseguir admitir que podia caracterizar qualquer pessoa como um filho da puta, incluindo o mais desgraçado dos desgraçados. Até porque, na prática - e são os números de vendas que o dizem - é mais provável que a Margarida Rebelo Pinto ou o José Rodrigues dos Santos contribuam mais para a felicidade e dignidade do tal povo do que o mais bem intencionado dos intelectuais urbanos, ao dar-lhe objectos de que ele gosta e que o entretêm. Não há nada mais dignificante do que isso. E Dostoiévski é grande porque consegue ir até aos limites desta possibilidade, nunca se esquece da necessidade de "entreter", talvez porque o próprio tivesse como objectivo ganhar dinheiro para pagar dívidas.

Assisti a isso diversas vezes, o típico leitor que devora tudo nos transportes públicos, sobretudo as coisas mais comerciais, mas que as distingue entre si por uma característica muito simples: é aborrecido vs não é aborrecido, no fundo, a implacável e justa medida de qualidade nesse campeonato. Ao contrário do "intelectual", que se esforça e se sente culpado por achar o Joyce uma estucha do caraças, e lê aquilo num esforço de auto-flagelação quase, para entrar no clube dos leitores crescidos, este tipo de leitor está-se bem marimbando. Autores como Dostoiévski são dos únicos que conseguem ter uma qualidade literária intemporal incontornável e ser metidos ali pelo meio. Só não são mais lidos porque também esse tipo de leitor tem muitas vezes um preconceito enervante: acha que vão ser aborrecidos!

6 comentários:

Anónimo disse...

A título de exemplo, O Som e a Fúria que estou e a ler e arrependi-me de o começar a ler.
R.

Maat disse...

essa constatação final sobre os leitores é muito acertada. eu própria, do mundo das literaturas, tenho esse sentimento em relação aos clássicos. não queria parar de ler o 'arranca corações' do vian, por exemplo, porque parece mal não estar a gostar. em relação ao Joyce, ainda não li com medo de não gostar/não perceber. porque depois vou sentir-me frustrada por achar aquilo uma trampa.
e concordo absolutamente com a ideia de que muitos leitores andam a perder bons livros por causa do preconceito de serem aborrecidos.

Tolan disse...

R., esse vai sendo progressivamente menos aborrecido, lembro-me que a primeira parte é muito chata e confusa.

Anónimo disse...

É exatamente o que me está a parecer. No entanto acho que é mais livro para se dar em aulas de "literatura" do que para entreter. Não encaixo o livro em "entretenimento". Com Dostoiévski aconteceu-me o mesmo. Admito que emperrava nas páginas e as personagens dançavam-me na cabeça sem ligação nenhuma. No entanto hoje se ler algo de Dostoiévski já se me afigura como algo de difícil compreensão. Mas mais uma vez, não acho que seja entretenimento. O mercado não procura leitores exigentes. É natural que o segmento que acaba por absorver (e neste caso criar mais espaço) seja o da literatura ligeira.
R.

Beatrix Kiddo disse...

mais um belo texto made in Tolan

o som e a fúria fui gostando mas depois do meio já me estava a coçar toda para acabá-lo. e não acabei. a educação sentimental do Flaubert que estou a ler, vou na página 227 e comecei só há poucas páginas a ver a luz.

Unknown disse...

Outro grande preconceito inconcebível: escritores do século XIX? Isso já não se lê? Dói só de ouvir isso.