domingo, 30 de setembro de 2012

o povo unido


(umas semanas depois...)
 




As pessoas de direita identificarão certamente o restaurante pelo brasão no serviço de loiça. Mas vamos começar pelo princípio.

A Plaft fez umas análises ao sangue e está com os neutrofitólios em baixos. Como só tem consulta com o médico daqui a uma semana, foi ver à net o que aquilo era e concluiu que tinha leucemia. Estava num estado muito depressivo quando cheguei a casa. Eu ainda disse umas piadas para tentar contrariar o seu estado de espírito ("tens leucemia porque és uma gata, se fosses uma cachorra tinhas leuceladra") mas sem efeito.
 

Gosto de aproveitar quando está assim vulnerável para a ir moldando a pouco e pouco numa pessoa de direita, mais capacitada a ser mãe e esposa e a reclamar menos. O facto de estar a morrer não quer dizer nada, um ou dois anos a trabalhar como alguém de direita e ainda me deixa uma herança decente em vez de caixotes com coisas que ela própria fez para feiras de artesanato.

Foi então que lhe falei da alegria que é ser de direita liberal, do conforto que há em não termos de pensar nos outros, de como nos liberta da culpa do prazer de viver e de querer tudo agora e que ela ainda ia a tempo. Era urgente para mim animar a Plaft. Quando a Plaft está assim tristonha eu não consigo ficar indiferente e sinto-me afectado, triste, ansioso. Lixa-me completamente uma boa noite de Playstation sossegado, não há nada a fazer, é preciso animá-la, devolver-lhe o sorriso de criança para poder jogar em paz.

Decidi  dar mais uma experiência de direita à Plaft antes dela morrer. Eu próprio também precisava de um bom reforço do meu sistema imuno-ideológico antes de ir com ela à manifestação de hoje convocada pela CGTP e, num impulso, convidei-a para jantar num sítio assim fixe. Às vezes levo o meu entusiasmo um pouco longe demais. Mas nunca pensei que ela aceitasse, uma vez que o dito restaurante tem muita talha dourada e isso costuma repelir pessoas de esquerda, algo que os responsáveis pela decoração de igrejas sabem há muito tempo. Para além disso, tem muitos espelhos que, como se sabe, não reflectem comunistas, pelo que, se um por acaso resistir à talha dourada, é rapidamente detectado pelo serviço e levado para a cozinha para ser transformado em bife tártaro.

Enquanto a Plaft se preparava, consultei o meu saldo bancário para confirmar que tinha o suficiente. É que tenho a tv cabo em débito directo e... e depois pensei "que se lixe a troika!". A merda do slogan entrou-me na cabeça e tenho dado por mim a fazer as coisas mais estúpidas enquanto penso "que se lixe a troika!" Faço chichi, não lavo as mãos e penso "que se lixe a troika!". Mudo de faixa sem pisca: "que se lixe a troika!" etc. Reservei mesa para dois e fomos no BMW que não é meu e foi comprado a crédito por uma empresa que também não é minha e que está endividada por causa da crise e despediu 80% dos trabalhadores nos últimos dois anos. E ainda dizem que os portugueses vivem acima das suas possibilidades... Já era tempo de eu ter a minha empresa e o meu BMW e nunca seria um touring mas sim um M4 no mínimo. E não despedia ninguém porque só contratava estagiários à rasca.


 


Quando a Plaft entrou no salão fincou-me as unhas no braço e contraiu-se toda: 'odeio esta gente toda, tens noção?' disse-me, ao passar os olhos pela sala composta por pessoas de mais de 50 anos, todas estrangeiras (brasileiros, espanhóis). Observei que ela e os empregados eram os únicos portugueses ali, uma vez que eu próprio não sou português, pelo que a afirmação dela era um pouco xenófoba e nada adequada aos pergaminhos da mítica tolerância da esquerda.

Se ela parecia um bocadinho acanhada, eu, como é evidente, senti-me extremamente à vontade. Nós, as pessoas de direita, nascemos e crescemos rodeados de empregados, talha dourada, espelhos (para vermos o quão belos somos), toalhas de alvo linho e copos de cristal onde bebemos o nesquick ofertado por amas africanas bem educadas. Não iria certamente ter dificuldades em compreender o menu que o empregado me estendeu.

Infelizmente, não conseguia reconhecer nenhum prato, expliquei à Plaft que deviam ter mudado o menu recentemente. Algumas coisas tinham nomes familiares. Ali conseguia ler "bacalhau", ali "pipoca", ali do outro lado "salmonete" e acolá "lavagante". Então escolhi perto de uma dúzia de pratos com muita convicção. 

Enquanto esperámos pela comida disse à Plaft: "tens consciência que o Eça de Queiroz muito provavelmente jantou aqui, nesta mesma mesa?" e ela disse-me "o Cavaco Silva também" e ficou o assunto arrumado.


Todos os pratos eram apresentados de acordo com o ritual das pessoas de direita. A empregada, muito simpática, pousava o prato e explicava o que estávamos a comer:  foie gras com unagui, compota de ruibarbo, mirin e sansho. Bom apetite, espero que gostem *vénia*, deixando a Plaft muito intrigada com tudo aquilo e eu perfeitamente à vontade porque se há coisa que me farto de comer é sandes de unagui, mirin e sansho a dar com um pau.

Enquanto a Plaft comia, de olhos semi-cerrados em grande sofrimento de pessoa de esquerda que está a ser exorcizada da esquerdice, confortei-a, explicando-lhe que ser de direita elimina aquele sentimento bilioso de ódiozinho ao mundo típico das pessoazinhas de esquerda que estão sempre assim com os bracinhos muito esticadinhos para cima de mãozinhas fechaditas, parecem uns anõezinhos a resmungar e a choramingar... 

Talvez um bacalhau com crosta de tremoço em cama de tomate e rolo de gelatina de cerveja a fizesse mudar de ideias quanto à manifestação de hoje.



Não fez. O problema era o ar de bacalhau, talvez um pouco redundante. Os salmonetes sobre pedra de sal com choco, algas e cenas diversas iam de certeza fazê-la compreender a necessidade de evitar participar num acontecimento que a CGTP iria capitalizar para si, dividindo a esquerda num sectarismo inaceitável numa altura em que todos temos de estar unidos pelo liberalismo que recusa a intervenção estatal em bancos e assume como natural a falência de estados e banca como...


Vacilou por momentos. Pude ver nos seus olhos aquele brilho, aquele lampejo de felicidade de alguém que subitamente entende a libertação quando comeu um pouco do salmonente. Mas depressa regressou ao modo de irredutível de esquerda quando lhe disse, com a melhor das intenções, que naquele momento me recordou uma ex-namorada minha da JSD, pela expressão feliz do olhar despreocupado, sem consciência da morte e do infortúnio dos outros. Aí a Plaft enervou-se. Disse que estava a gostar do jantar mas que também não era preciso exagerar, não passava de algo que se comprava com dinheiro e que as coisas importantes na vida não se compram. Discordei, disse-lhe que uma criança, até uma criança pobre, precisa de comer e a comida custa dinheiro. Qual é o problema, perguntei-lhe, de comer uma refeição que custa o mesmo que a alimentação diária de uma criança pobre?


A Plaft disse que eu devia estar doido, uma criança pobre nem num mês comia o valor daquela refeição. Expliquei-lhe que os meus cálculos incluíam pequeno almoço, almoço, lanche, jantar e ceia, com direito a repetir. Foi talvez o momento menos feliz da noite, porque discutimos um bocado. No meu entender, aquela refeição era um excelente exemplo de austeridade. Comparemos as doses servidas neste sítio humilde, com as travessas a transbordar em qualquer restaurante onde vocês vão. A opulência do povo que se enche de favas, batatas, arroz, couve, travessas a transbordar, enquanto que as pessoas de direita se contentam com um bocadinho de gelatina de coentro, um favo de mel e uma perna de mular prensada com foie gras e polen e para disfarçar enfeitam os pratos.


Ficámos um pouco amuados um com o outro. Uma hipótese de ponto de encontro foi o tártaro com ovo de codorniz e o tutano, ela chorou de prazer e eu também, porque imaginei que aquela carne era o Arménio Carlos. Aliás, hoje quando vi o Arménio Carlos a discursar, fiquei um pouco desapontado.



Comecei a aperceber-me que, com toda a comida e vinhos, a Plaft começou a esquecer-se de que ia morrer e a ficar bem disposta. Quando chegaram as sobremesas expliquei-lhe que uma diferença fundamental entre a esquerda e a direita é que a esquerda aguarda um novo mundo, o do povo unido que jamais será vencido, o mundo da igualdade, como os católicos aguardam a ressurreição e o regresso de Jesus Cristo e que isso implica considerar o momento actual como transitório porque a luta continua e continua e continua...


.... e continua, enquanto que as pessoas de direita aceitam o mundo como ele é e tiram dele o melhor partido possível. As pessoas de esquerda, em vez de aceitarem a humanidade, julgam e julgam, como anões aborrecidos que dão pequenos saltos a exigir e a exigir, a pedinchar e a choramingar, por favor, vá lá, vá lá... "Como tu quando queres sexo?" observou a Plaf e aí eu calei-me desisti. Não valia a pena.

 
 
A esquerdice é como uma doença crónica, pode ser amenizada mas cura, não tem. Comemos a explosão de figo e framboesa em silêncio e às tantas eu devo ter dito "é pena morreres, sem saúdinha não há luta continua, a luta acaba e pronto".  Ainda nos deram moscatel de borla, devem ter topado que um de nós era pobre e apreciava receber coisas de borla.

12 comentários:

Anónimo disse...

No meu caso acho que já nasci com o pulso cerrado e cedo aprendi a cantar a Internacional.

Pedro Almeida disse...

Duas notas apenas:

1ª - uma hora depois estavam cheios de fome e foram ao drive thru de um Mac, certo?
2ª - Não me parece muito de direita tirar fotos à comida quando se vai a um restaurante finório, fica a impressão que foi a primeira (e única) vez que lá foram e ficaram deslumbrados.
3ª - Quer-me parecer que afinal foi a Plaft que te conseguiu transformar num gajo decente de esquerda.

Bem vindo camarada!

Xuxi disse...

Há ali uma espuma num dos pratos (2ª foto)...aquilo é baba de algum de vocês ou é nhónhónhó gelatina de espuma de cerveja?
resumindo e baralhando, podiam em vez de ter passado fome, ter sustentado uma criança em áfrica por um ano?
bem que sa lixe, leucemia é leucemia...
as pratas e as talhas estavam bem areadas? tou há bastantes anos para ir a este estaminé,não ficámos a saber, valeu a pena? recomendam? é pra cagar na criancinha de áfrica e ir lá torrar umas centenas? fico à espera de fidebaqui para saber se mando reservar mesa.

ps- és um romântico

MDRoque disse...

Adorei o post ! Para alguém que não é português :) , está primorosamente escrito ... Chorei, ri, sei lá...

Anónimo disse...

não sei se me ri mais do post, se dos comentários...
Sentido de humor, anyone?!!??!?!

delarocha disse...

Também tinha comida, o tasco? Ou era só entradas? lol

Izzie disse...

Sei de um tasco onde se comem uns secretos que faz favor com batatinha frita caseira daqui, onde há sempre p'xinho fresco com cabeça e tudo, e onde se pode terminar o repasto com a melhor mousse de Lisboa, com cheirinho. Estás à vontade.

Anónimo disse...

Eu fui ao Turco (Dervixe) e fiquei arrependido.
Sou acérrimo utilizador do restaurante "fenícios" e do "kebab" perto do "passerelle".
E sou de direita.
R.

a.i. disse...

isso cheira-me a grémio literário... eu sou de esquerda e já lá fui várias vezes, mas sempre a convite de um sócio. aliás, quem me convidou sempre me disse que lá só pode pagar o jantar quem é sócio.. mas por outro lado, tinha ideia que quem não é sócio, nem sequer pode reservar mesa??

A Mais Picante disse...

Sou fá dos pregos e dos croquetes, Comidos ao balcão, acompanhados de uma cerveja gelada.
Já a Pipoca terá uma secreta preferência pelo champagne coalhado ou lagosta suada :-)

DonJuan disse...

Ahahah muito bem escrito.
Pensei que o Tavares tinha fechado.

Lili C. disse...

EHEHE ADOREI o post! Adorei os comentarios! Muita gente com tenda na quinta da atalaia anda por aqui!