quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

carta ao autor

Querido Autor,
tenho reparado que continuas como sempre na tua vida de escravo de nada. Obrigas-nos a acordar cedo demais e consegues sair da cama apesar de eu te prender a ela com o poder da preguiça ou da erecção matinal ou das fantasias eróticas. Nem a diferença térmica te consegue demover de arrastares o corpo aquecido da toca para o ar gelado da manhã ao 6º ou 7º snooze consecutivo e de tomares banho e de te esfregares todo atrás das orelhas e fazeres a barba imberbe em frente a um espelho embaciado. Escolhes a roupa a pensar nos outros, nada mudou, antes era a tua mãe que a escolhia. Se for dia de reunião é um fato, se o presidente estiver na empresa é o uniforme beto. Mas as calças de ganga, ténis e t-shirt é só se souberes de ante-mão que não há reuniões. Traste. Adorei aquela vez em que foste chamado para uma reunião surpresa com o presidente daquela empresa e tiveste de aparecer com a t-shirt dos sonic youth e os ténis vans depois de implorares para não te chamarem! Ah! AH! Isso, esconde-te cobarde!
E o trânsito, o trânsito que desaparece 10 minutos depois mas que tens de enfrentar porque 10 minutos depois chegas atrasado. Atrasado a quê? À tua cova? E ouves as notícias e o trânsito e é a mesma merda todos os dias e tu ouves e depois desligas o rádio e falas sozinho, berras, cantas, imitas vozes, imaginas poemas e porquê? Porque ninguém te está a ouvir dentro do carro alemão de 300 cavalos meu cobarde. Ouve o que eu te digo: vais morrer e quando tu morreres eu morro também porque infelizmente estamos ligados. Adorava ver-me livre de ti, adorava, porque é que foste tu a nascer e não eu?

Pensa no pai meu idiota. O velho preocupou-se toda a vida, preocupações, preocupações, preocupações, tu eras uma delas meu traste e no fim deixaste-o ir sozinho com umas pazadas de terra em cima e ficaste com a herança, a poupança de uma vida de abnegação e que tu estoiraste em jogo, brinquedos que ele não te dava no natal, jantares finos e, a única coisa de jeito, mulheres.

Lembras-te do Garoto, o cão maluco, o primeiro que tivémos? De como mordia toda gente e era um terror? Lembras-te da sensação de privilégio que era andar na rua com ele e dos teus amigos fugirem todos quando ele andava à solta, de como te sentias um Deus porque ele não te mordia a ti? E lembras-te a da perplexidade que sentiste quando ele te rasgou e arrancou a unha do indicador da mão direita e o pai que o quis matar logo ali mas não matou logo ali e só matou uns anos depois com a injecção de pentotal? Lembras-te do corpo dele embrulhado no seu velho cobertor, a ser pousado na cova ao pé da laranjeira do quintal e de como juraste que te ias vingar “das pessoas em geral por existirem”? Pensa nisso antes de voltares a vestires um fato e a certificares-te que o nó da gravata está bom e que não se nota a mancha de vinho se abotoares o casaco.

Junta-te a mim. Anda. Estou farto de ser um fantasma e flutuar por cima de ti, um adereço que te confere a ilusão de seres mais do que alguém que acaba com pazadas de terra em cima e de que tens futuro. Começa hoje. Ou vais esperar? Achas que és imortal?


ao poeta Rui Costa (1972-2012)

11 comentários:

Cuca, a Pirata disse...

O Rui era teu fã, Tolan.

Isa disse...

Adorei, Tolan. Adorei.

Anónimo disse...

Mas tu sabes, né, que vais ter de aprender a soltar um e outro de vez em quando. ou então o autor toma conta, mind Mr Hyde...
Bjo
I

Anónimo disse...

Não há nada como um poeta. Não há nada como um poeta morto. Então se tiver morrido novo, ui. Então se for suicida ou tiver morrido em circunstancias misteriosas, ui ui. Então se vierem a dar com o corpo à tona das águas de um rio. Ui. Não há nada como um poeta.

Anónimo disse...

Ah, e se ainda por cima for giro? Ui, então é que o caldo está mesmo entornado!

O Lendário Fábio Ivanildo disse...

Brava homenagem, meu caro.

(desta vez sem copo na mão, mas ouvindo Becaud, "Quand il est mort le poète")

Maria Flausina disse...

Sim Autor, deixa lá o Tolan sair mais vezes... e vais ver que no fim não vais ter medo das pazadas de terra, mas não te deixes é ir com a água antes que chegue mesmo o fim!
Quem te lê agradece.

Sofia disse...

Magnifico, mais uma vez Tolan. Quando quiseres cheetos e ele não tos der, manda um mail.

Anónimo disse...

Tolan is back!

R. disse...

com uma certa vontade de te roubar o último paragrafo

tata disse...

Brilhante e comovente...