sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

diário de mim no futuro (muito optimista)

Nota prévia: isto começou por ser a introdução de uma coisa que depois parou. O Autor aproveitou parte da coisa e trabalhou nela para um conto do Autor na Sul de Nenhum Norte que sai em janeiro e este é um bocado que antecede tudo e não encaixava em lado nenhum e iria para o caixote não fosse eu ter aqui no blogue uma comunidade de guaxinins sedentos de lixo fresco.




Podia dizer que me considero um tipo normal mas a verdade é que não sou e isso seria mentira. Detesto que as pessoas não me dêem a devida atenção e quando isso acontece amuo e não digo mais nada. Só por aqui se vê bem a inclinação que tenho para ser uma pessoa especial.

Tinha um emprego num Instituto e fui promovido e deram-me um gabinete só para mim, com vista para um parque de estacionamento e para a fachada de um hotel Ibis de quatro estrelas. O parque de estacionamento não era bem um parque de estacionamento. Tratava-se de um terreno baldio que teria um jardim que nunca veio a ter porque a empreiteira faliu. O espaço era aproveitado para estacionar carros com a ajuda de dois arrumadores que se estavam sempre a pegar à pancada. Depois um dos arrumadores morreu, provavelmente de Sida porque andava mesmo com aquelas manchas na cara e muito magro e já só tinha direito a um pequeno lote do parque. O outro que ainda estava saudável ficou com pelo menos noventa por cento dos lugares mas também não enriqueceu porque gastava tudo em porcaria.
No inverno, com a chuva, o terreno baldio ficava lamacento. Alguns carros, especialmente os citadinos de baixa potência, atolavam-se e os donos enterravam-se na lama até aos tornozelos ao sair do carro.

Eu não precisava de passar por isso porque tinha lugar de garagem. Para além disto, muito normal em si, eu era casado, tinha dois filhos e um gato que detestava, mas que a minha mulher quis. Tentei livrar-me dele de várias maneiras, tentando fazer parecer que foi um acidente, mas ela acabava por salvá-lo no último instante ou então eu arrependia-me e não ia até ao fim, como da vez em que o atraí para dentro da máquina de lavar roupa com um rasto de pedaços de atum e depois não a consegui ligar, nem sequer no programa de tecidos delicados.

Eu gosto de animais, especialmente cães e alguns gatos, mas o Jeremias em particular irritava-me bastante pois não tinha qualquer respeito por mim ou pelas minhas coisas, nem pelas pessoas em geral. A Sara, como todas as mulheres, ainda gostava mais dele por isso mesmo. É curioso que para elogiar os gatos face aos cães a Sara dizia que 'os gatos não são lambe-botas como os cães, são independentes' e depois a mim exigia-me um comportamento servil. Bastava-me ter um rasgo de vontade própria que ela desatava aos gritos ou a chorar, como fazem as mulheres quando querem qualquer coisa e não sabem bem o que é.

Os meus filhos eram o Manuel, que hoje deve ter uns quinze ou dezasseis anos e a Inês, que terá uns doze ou treze. Dava-me bem com o Manuel mas a Inês intimidava-me um pouco e não sabia bem como falar com ela. Parecia estar sempre a censurar-me ou a considerar-me patético. Li que é normal as meninas quererem casar com o pai mas a Inês não parecia seguir este padrão. Quando entrava na sala onde eu e o Manuel jogávamos playstation, suspirava, abanava a cabeça e voltava para o seu quarto para desenhar.

Gastámos uma fortuna em lápis de cor e de cera e folhas de papel cavalinho. Desistimos dos guaches porque ela sujava-se demais, tinha dificuldade em compreender que a tela era a folha branca e não as paredes do quarto ou a própria roupa. A Sara achava isso muito criativo e dizia que quando era pequena também era assim, mas já bastava o Jeremias para espalhar o caos e a destruição em casa. Uma vez a Inês pintou o Jeremias com os guaches e ele apareceu-nos todo cor de rosa e com as orelhas azuis. Fez uma grande porcaria e deixou marcas das patas cor de rosa por cima dos meus móveis vintage.

Tudo isto parece 'normal', digamos assim, não acho que seja muito diferente daquilo que é a vida da maior parte das pessoas de classe média alta e que vivem em Lisboa num apartamento.

Não posso deixar de referir uma particularidade que se calhar já deu para perceber pelo facto de não saber bem a idade dos meus filhos: tenho uma memória muito limitada para certo tipo de coisas. É normal esquecermo-nos do sítio onde estacionámos o carro, mas eu já nessa altura por vezes esquecia-me de como era o meu carro, o que dificultava bastante o acto de o encontrar e de ir para o trabalho. Sabia que era cinzento e grande e então tinha de experimentar a chave em vários carros cinzentos e grandes, o que provocava situações embaraçosas quando aparecia o respectivo dono à janela do prédio. Também me esquecia de nomes de pessoas, números, confundia os dias da semana e aconteceu-me umas vezes ir trabalhar a um sábado, deixando o porteiro do Instituto muito surpreendido de me ver chegar bem disposto de não haver trânsito naquele dia.

Esquecia-me de quase tudo o que me diziam e das coisas que tinha para fazer. A Sara sofria bastante com esta minha amnésia mas eu descobri com o tempo que me podia esquecer do que não me interessava só me lembrar do que me interessava. No trabalho utilizava muito a agenda do outlook. Assim que me diziam algo eu apontava logo a tarefa, com o prazo e quem me pediu e porquê e explicava a mim mesmo porque motivo aquilo era importante e tinha de ser feito. Mesmo assim não ajudava muito porque quando o alarme da tarefa soava e ela aparecia no meu ecrã, normalmente era na véspera de concluir a tarefa e não tinha tempo para a acabar como deve ser. Felizmente, no Instituto, as coisas não eram muito exigentes e uma pessoa, desde que fosse discreta, podia ir vivendo.

Em casa era a Sara que tentava organizar as coisas. Ela tinha, e deve ter ainda, uma excelente memória prática, ao contrário de mim. Mas ao contrário de mim, era muito irracional a tomar decisões, quase uma criança. Isso não deve ter mudado. Juntos tentávamos manter a ordem em casa e fazer as coisas andar e impedir que os nossos filhos morressem à fome ou vivessem na rua. Ela, com a sua excelente memória, enumerava os factos todos, as coisas que era preciso fazer e que tinham de ser resolvidas e eu depois decidia no momento qual a melhor opção. Eu era excelente a decidir e a improvisar embora no Instituto onde trabalhava me exigissem muito pouca capacidade de improviso e decisão. As coisas que tinha normalmente para fazer estavam já definidas e não valia a pena tentar inventar muito porque senão o meu director ia corrigir tudo e mandar aquilo para trás três ou quatro vezes até eu desistir.

Quando eu e a Sara estávamos a decidir coisas e a fazer contas da prestação da casa e do carro, e a discutir alternativas, o Manuel e a Inês observavam-nos um pouco preocupados porque pressentiam que não sabíamos bem o que fazíamos, mais ainda quando se tratava de assuntos que lhes diziam directamente respeito, como as vacinas ou a inscrição na escola. Às vezes intrometiam-se e davam uma sugestão e eu e a Sara fingíamos que os ignorávamos mas depois às tantas percebíamos que se calhar a sugestão não era má e, subtilmente, concordávamos com ela sem que as crianças percebessem isso, pois iria pôr em causa as nossas capacidades enquanto pais.

Para além de não me lembrar de coisas e de me enervar muito quando não me prestam atenção, tenho outros problemas. Não sei bem por onde começar para falar nos problemas. Acho que os tenho desde pequenino mas não me lembro bem. Talvez nessa altura não fossem propriamente problemas, só começaram a ser mais tarde. Apesar de eu não ter mudado muito ao longo da vida, pelos vistos a minha vida mudou muito e rejeitou-me a certa altura, como se eu não tivesse evoluído da maneira que ela queria que eu evoluísse. No entanto, nunca me explicou de forma clara e precisa, para eu anotar nas minhas tasks no outlook, exactamente o que pretendia de mim e com prazos e tudo.

4 comentários:

Wiwia disse...

:)

Anónimo disse...

é engraçado porque é verdade

Anónimo disse...

É um prazer ser guaxinim.
Mais lixo fresco, por favor.
:)

ANGIE disse...

O Jeremias pintado de rosa com as orelhas azuis deve ter ficado fantástico!