Aníbal serviu-se de sumo natural de beterraba na cozinha. Encheu o copo do Noddy quase até a cima e depois despejou-lhe gelo. Tinha de o fazer às escuras, raramente acendiam luzes em casa, apenas o faziam quando necessário. Conheciam todos os recantos da casa, conheciam os rostos um do outro e a luz era um luxo moderno que podiam dispensar.
Na sala de estar a Rádio Renascença a passava a missa da noite. A voz de Maria sobrepunha-se-lhe, numa ladaínha de rezas, um gemido débil e contínuo. Bebeu metade do sumo de um trago. O sabor acre da beterraba fê-lo estremecer e arrotou.
- Não dês arrotos Aníbal – ouviu a voz de Maria
- Desculpa Maria. O bacalhau à braz… não me caiu muito bem.
Aníbal gostava de deixar a esposa só enquanto rezava, considerava-o um momento íntimo. Em troca, pedia a Maria que se deslocasse para uma ponta da casa quando ele utilizava a casa de banho, devido aos ruídos escatológicos que não conseguia evitar.
A ladaínha terminou e Aníbal benzeu-se com sinceridade, piscando os olhos na escuridão.
- Vem para a sala, está a começar o Portugal Tem Talento.
Aníbal apertou o cordão do velho roupão coçado e, arrastando os chinelos, entrou na sala. O rosto de Maria apareceu-lhe banhado pela luz azul do televisor, a boca num esgar vagamente semelhante a um sorriso e as sobrancelhas arqueadas de forma irreal, como se tivesse uma máscara posta. O televisor era um velho Grundig de 1990, um fiel aparelho que lhes fora oferecido por George H.W.Bush em troca da utilização da Base das Lajes para a Guerra do Golfo.
- Dá um jeito à antena.
Aníbal já conhecia a rotina, arrastava os chinelos até ao aperelho, dava-lhe duas pancadinhas do lado direito, torcia um pouco o fio da antena, tudo enquanto Maria aplicava uma oração especial. A imagem melhorava sempre.
Ficaram sentados no velho sofá, com uma manta nos joelhos, a observar e avaliar o talento que Portugal tinha. Aníbal ia sorvendo pequenos golos do sumo de beterraba, tentando esquecer o dia.
De vez em quando ouviam um ruído na rua, uma voz mais elevada, uma buzina, um riso e nesses momentos Maria deixava de sorrir, baixava o som da televisão e punha-se à escuta, contraindo os maxilares em tensão. Aníbal fingia por-se à escuta também, mas a verdade é que era duro de ouvido e não conseguia distinguir os sons, nem a sua origem. Piscava os olhos muito rapidamente, em empatia com a preocupação de Maria. No intervalo da publicidade, levantou-se e dirigiu-se à cozinha, endireitando o retrato de Oliveira Salazar.
- Onde vais? – sibilou Maria. A voz dela soou-lhe ameaçadora e fria.
- Vou só à cozinha buscar mais sumo.
- Metes-me nojo! Nojo ouviste? Podias tê-lo humilhado Aníbal! Humilhado! Aquele traste agora é um mártir! Um mártir Aníbal! Nós que perdemos as poupanças todas no BPN Aníbal! As nossas poupanças do tempo de professores Aníbal! E aquele traste é um mártir! Metes-me nojo!
Lágrimas escorriam nos sulcos das rugas de Maria, arrastando uma espessa camada de rímel. Aníbal deixou-se cair fulminado, de joelhos no chão da sala. Levou as mãos à cabeça e deixou-se ficar assim muito tempo, até ouvir os passos de Maria em direcção ao quarto e a porta a bater.
Levantou-se a custo. Foi para o escritório, ligou o computador, um velho Schneider Euro PC que lhe fora oferecido por Jacques Delors numa cimeira europeia.
Ganhara o vício da Página da Presidência e estava sempre a actualizá-la com fofocas e pedidos de demissão, a ver os comentários e a adicionar amigos. Depois de recusar pela vigésima vez consecutiva o pedido de amizade de Obama e fazer unfriend ao Kadhafi, bebeu mais um pouco de sumo de beterraba .
Começou a chover e sentiu-se vazio, vazio como uma caverna escura, habitada por peixes escuros no fundo do mar.
11 comentários:
Olha que n deve ser mto diferente!
Olha que n deve ser mto diferente!
HAHAHAHA
Carla
Pá, acabei de ler A Catedral e o De Que Falamos Quando Falamos de Amor, os dois de seguida... Gostei (mas não fiquei deslumbrado).
Hilariante ;-)
Hmm Diego, será que leste as versões originais? Não digo traduções, mas as versões originais dos contos, é que essa edição de que falas parece-me que é a primeira e foi muito cortada, talvez 80% do conteúdo todo e o próprio Carver sentiu-se muito mal com isso mas lá acabou por aceder ao pedido do editor. Não sei...
ahahahahah. Mto bom.
Parece q estou a imaginar o cenário. Acrescentava, talvez, um copinho de agua p o tio cavaco meter a dentadura de molho - não fosse a beterraba deixar resíduos...
Muito bom. Caro Barco afundado, eu vi isto, eu estive nesta sala por momentos. Lamento que não tivesse observado a luz abundante do candeiro da rua que entrava pela marquise.
Luís
Excelente!
Excelente, divino, genial, este texto está digno Tolan, gostei mesmo. Parabéns.
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