sexta-feira, 4 de março de 2011

o cinema e as classes

Não me revejo nesta análise da minha amiga Rita do Rua da Abadia. Ela diz «certos filmes que não pecam necessariamente por pouco multiculturalismo - pecam fundamentalmente por uma hegemonia notória ao nível de estilos de vida ou classe social. Não estamos apenas a falar de filmes exclusivamente compostos por actores brancos, destinados provavelmente a um público branco; estamos a falar de filmes compostos por actores não só brancos, como também lourinhos, de olhos claros, anglo-protestantes, os típicos "wasps" de alta burguesia»

A Rita que também escreve bem diz no seu Inferno Cheio, em reacção ao texto da outra Rita:: É uma espécie de regra geral do cinema de entretenimento: Se quero contar uma história sobre o amor, a amizade, os homens ou o melhor condimento para pizza, escolho brancos ricos e educados. Acho que nem sequer é para assinalar a distinção de classe, é mais uma espécie de tabula rasa narrativa.

Bom, penso que a Rita 2 está mais próxima do que considero ser a origem da questão digamos assim. Mas deixando de parte os maus filmes, pensemos no melhor realizador de sempre, Alfred Hitchcock. Hitchcock usou sempre a classe alta nos seus filmes. São ricos, elas são loiras, movem-se em hotéis, paquetes, andam de avião e não fazem nada. As suas vidas "materiais" são sempre uma incógnita, mas o dinheiro não existe como restrição narrativa. Se é preciso um taxi, há taxi, um avião para Timbuktu, apanha-se, um fato novo em Nova Iorque, compra-se. Há whisky, charutos, ópera, carros rápidos e casacos de pele.

Eu gosto.

Os castings de Hitchcock também eram cirúrgicos. Para além da sua obsessão por loiras, ele queria uma espécie de homem "limpo", a tal tabula rasa narrativa de que fala a Rita 2, que depois é lançada num remoínho de thriller e caos.

James Stewart e Kim Novak

Cary Grant e Grace Kelly

Gregory Peck e Ingrid Bergman

Os homens e mulheres de Hitchock correspondem a um ideal clássico, ao equivalente dos príncipes e princesas das fábulas. Recordo-me de ver uma entrevista ao realizador em que ele justifica o uso da classe alta porque "fascina as pessoas", nomeadamente, o grosso dos espectadores.

Depois Hitchcok lança o inferno sobre as suas marionetas, elas são envolvidas em pesadelos. E há algo de sádico também, nos instintos do público. Masoquista e sádico, em ver os seres perfeitos como joguetes do destino cruel e a voltarem para casa felizes de não se meterem naquelas aventuras perigosas.

Com esta técnica, o Hitchcock consegue depois subverter os clichés. Ele abraça os estereótipos de uma novela normal, mas a novela transforma-se em thriller e pesadelo.

O bom cinema está cheio disto. A boa literatura também. Há muito mais "clássicos" de um e outro meio que recorrem à aristocracia das epócas do que aos "miseráveis" ou um realismo politizado. É só enumerá-los, a começar pela Ilíada e Odisseia.

2 comentários:

disse...

há uma fórmula genérica e muito básica que não é obviamente exclusiva do Hitchcock ou do cinema sequer, segundo a qual "no melhor pano cai a nódoa", tanto no sentido literal do provérbio de que ninguém está acima dos vícios e vicissitudes humanas, independentemente da classe, como no âmbito de enaltecer a nódoa e o tema em si ao utilizar-se à partida um pano de seda imaculado. é um estilo secular que não me parece estranho perseguir ainda hoje em dia.

mas segundo percebi do texto "da rita", ela referia-se, pelos exemplos, a comédias românticas ou dramáticas ou afins (nem posso avaliar a qualidade daqueles filmes em particular), algumas das quais seria perfeitamente indiferente se o pano é bom ou é uma merda de limpar urinóis, e ainda assim se prefere utilizar os personagens louros de olhos azuis who talk money. é que é suposto o filme ser leve e de absorção rápida e os estereótipos de classes são rapidamente reconhecíveis. deixar de os utilizar por pressão sociológica é o mesmo que obrigar à paridade de sexos nos cargos políticos, com a qual se promove uma incompetência politicamente correcta, como se uma instituição pública fosse uma arca de Noé. se os estereótipos funcionam, usam-se, sobretudo quando a intenção é especificamente comercial.

enfim, gosto de invadir caixas de comentários de desconhecidos com blocos de texto cerrado. bom blog.

Tolan disse...

Zé, eu até estive para usar essa expressão, da Arca de Noé, para os filmes que preenchem quotas de classes e minorias politicamente correctas... há filmes em que claramente se estão a preencher quotas com os clichés todos. Isso dará pano para mangas para outro texto, a partir de uma pista no texto da Rita. Obrigado pelo comentário, volte sempre :)