quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

a minha caçada

Acredito que o segredo para uma boa relação é não tentar impôr os nossos gostos à outra pessoa e não a trancar dentro de casa e esconder a chave quando o plano para os dois é jogar playstation e poker. Foi uma lição que aprendi com a ajuda de uma ex namorada claustrofóbica e de um juiz de instrução pedagógico. Também compreendi que a definição legal de sequestro é bastante vaga. Portanto, coloquei-me nas mãos da Princesa para fazer o que ela quisesse este domingo. Estava à espera de irmos ao IKEA e depois à Decathlon mas nada disso. O que quis fazer? Caçar no Alentejo!
A culpa é em parte minha. Tendo a exagerar um pouco as coisas desde que li Hemingway e lhe quis copiar alguns hábitos. Ela já me tinha falado em caça e eu armei-me em parvo e disse que tinha licença, uma Beretta automática de canos sobrepostos e um excelente cão de caça, a Virgínia Woof e que adorava matar animais e o gosto de ferro do sangue quente. Pelos vistos, ela é obcecada por caça, toda gente na sua família é obcecada por caça e ela só não me falou nisso antes porque teve "um acidente infeliz com um ex namorado". O problema é que não tenho licença, só sei manejar armas com um comando da Ps3 e a Virgínia Woof gosta tanto de caça como o Ricardo Salgado de comunistas. A Virgínia Woof é provavelmente o cão mais medricas que já conheci, uma vez deu um salto ao ver uma coisa ao lado dela a aproximar-se: a sua própria sombra. A maior parte dos cães persegue a cauda, a Woofie é o tipo de cão que foge da cauda. É o tipo de cão que sobe às árvores por causa dos gatos. É o tipo de cão que quando há foguetes na aldeia tapa os olhos com as patas e se esconde dentro de um roupeiro, normalmente o que tem os meus fatos caros.
A Princesa acordou-me às 5:30 da manhã com o Eye of The Tiger a bombar do Nokia. Saímos de Lisboa, ela a conduzir, eu nem conseguia abrir os olhos. Nevoeiro, chuva, frio, vento. Parecia um sonho. Um pesadelo, mais propriamente. Mas tentei ver as coisas como uma experiência literária digna de Hemingway. Passámos pela quinta dos meus pais buscar a Virgínia Woof que, ao ver-me começar a equipar o material de caça do meu pai - cartucheira, colete camuflado, boné Angola 67, cartuchos fora de prazo, a caçadeira, o canivete Ciber Vitorinox (práticas chaves para desmontar computadores e circuitos eléctricos) – substituiu a alegria por um olhar de incredulidade e pela pose 'patinhas nos olhos'. Tive de a levar ao colo para o carro, as pernas tremiam-lhe. O meu pai tentara em tempos, sem sucesso, fazê-la gostar de caça, mas só a traumatizou ainda mais. A Princesa comentou que o cão estava estranho, eu disse-lhe que ela ficava tão tensa com a alegria de ir caçar que nem se conseguia mexer.
Às 8 e pouco da manhã chegámos à região de Canha. Parámos o carro num ermo isolado. A ideia de ter levado as minhas botas Onitsuka Tiger não me pareceu tão boa quando os meus pés se afundaram em 40cm de lama. A Princesa limpou a sua arma e manejou-a com perícia militar, tudo a fazer clicks e clacks de coisas a encaixar, cuspiu, passou um paninho, olhou pelo cano, colocou três cartuchos, armou-a, tchak tchak… eu fiquei a olhar para a minha e a pensar “onde está a tecla square disto, é o reload no battle field 2…” A Virginia Woof olhava para mim, depois para ela, depois para mim, com uma expressão suplicante de “wtf!?”
- Não armas a tua arma? – perguntou-me.
- Podes armá-la tu? Para dar sorte querida.
Safei-me com elegância. Metemos por um terreno lavrado, torrões enormes. A Princesa saltava de torrão em torrão com a elegância de uma ave pernalta, eu, por outro lado, parecia um urso pardo ébrio e a Virgínia Woof um kanguru. Qualquer peça de caça num raio de dois km devia ouvir-nos chegar tal era o aparato. A Princesa pareceu enervada e às tantas, num matagal em que eu estava entretido a cortar silvas uma a uma com o canivete para a avançar em segurança pelo lamaçal e a chuva miudinha, sussurrou-me com uma voz que parecia a do Golum
- Não faças barulho idiota. Tens de ser silencioso como uma sombra, rápido como o tigre, atento como a águia e inteligente como o lobo.
- Estou encharcado como o pinto e chateado como o peru.
- Pschh!
Colocou o indicador na boca. Ouviu qualquer coisa. Farejou o ar. A Virgínia Woof farejava o ar também mas à procura de amoras nas silvas, ela gosta bastante de amoras. De repente uma lebre desatou a correr à frente da Woofie. Provavelmente pensou que era um animal para brincar e começou a correr atrás dela, a latir e arfar alegremente. A Princesa encostou a coronha no ombro e fez pontaria. Um som de trovão a lebre foi literalmente atirada pelo ar dando duas cambalhotas. A Woofie estacou e encolheu o rabo entre as pernas, a dois metros da lebre.
- Busca.
Obedeci. Fui buscar a lebre. Estava quentinha ainda. Pensei no Bugs Bunny e saiu-me um “whats up doc?” quando peguei nela pelas patas de trás. Também tive de a levar a Virgínia Woof ao colo durante meia hora pelo menos, até ela recuperar a circulação nas patas.
O resto da caçada decorreu da mesma forma, uma carnificina implacável. A Virginia Woof corria atrás das coisas a pensar que era para brincar, tiro, as coisas ficavam caídas num sítio, marcado pela Virgínia Woof petrificada de susto e eu ia buscar ambos, a Woof e a vítima. Perdizes, pombos, codornizes, coelhos, faisões, todo um ecossistema a sangrar-me o colete e as calças. Não sei se isto de partilhar interesses com a namorada é uma boa ideia. Para disfarçar ainda dei um tiro ao calhas, de repente, e disse à Princesa que era um pombo que ia a passar, mas só acertei, sem querer, num candeeiro de iluminação pública que se estilhaçou em chispas eléctricas impressionantes e comprometedoras.

11 comentários:

nsilveira disse...

sou mega fã da Princesa, adoro uma mulher que sabe manejar armas. a única coisa que tem contra ela é o facto de permitir que alguém a trate por Princesa.

2074 disse...

Isto está brilhante demais.
Sem qualquer exagero.

Parabéns!

2074dc

Papoila disse...

Cruzes, dói-me a barriga de tanto rir!

Loira disse...

Obrigada pelo momento proporcionado neste tão entediante dia de trabalho. Hilarinate!!!

António disse...

Andas a perseguir a genialidade com a mesma eficácia com que a princesa desmembrava bicharada. Em grande!

Anónimo disse...

Lindo! Lindo! Lindo!

Isabel disse...

Imaginação não te falta!

Vareta disse...

Para o próximo fim-de-semana, sugeria-te uma matança do porco. Será a tua oportunidade de retribuição, em particular se a matança for tradicional mesmo, com um rancho de mulheres de alguidar à cabeça para ir lavar as tripas (do porco, não as delas) ao riacho.

Dani disse...

Confesso que lia o blog esporadicamente, mas desde que começaram os posts com a princesa, venho sempre bisbilhotar à procura de um novo!
Adorei este, levou-me às lágrimas de tanto rir!
A Princesa é uma mulher muito peculiar, isso é certo.

Cat disse...

Com tanta caça esqueceste-te do javali? De certeza que apareceu um.

Anónimo disse...

Isto é hilariante!!!
"....até ela recuperar a circulação nas patas"
(ainda me agarro à barriga e já li 3 vezes!!!)

Beijinhos grandes!

Bárbara T.