Por vezes, o 25 de Abril parece um acontecimento mítico dos velhos políticos, algo como uma aparição de fátima aos pastorinhos, a ganhar um pó que se limpa a cada manif sindicalizada, a cada encenação patriótica oficial de fato, gravata ou uniforme, pompa e circunstância, ritualizado, com mais pessoas no palco do que na rua. Grandola Vila Morena na garganta de jovens em flash mobs virais, quando um simples 'ó fulano, vai pró caralho' seria mais adequado ao fulano. Nem sequer temos um poeta, um cantor, temos Geis e temos Deolindas e eu tenho vergonha alheia. Ao preço a que estão as guitarras, com a literatura toda disponível, a informação toda, a liberdade, a internet... e não se consegue parir nada de jeito, verdadeiro, enredam-s no revival pop, no pastiche pegado, no soviet chique, na ideologia vintage mistificada até à exaustão. Não sejam velhos, ó jovens. O 25 de Abril deve-vos ser tão sagrado como as taças dos campeões europeus do Benfica. Fomos, mas o que importa é o que somos. É impossível fingir sentimentos e revolta. Mais depressa o trovador do nosso tempo vem da Damaia ou da Amadora do que da medíocre jovem elite à rasca. A juventude como outra face de uma moeda velha e gasta que se mete na juke box para tocar o disco de sempre, a encenação de sempre, velha, velha, velha... Agitam espantalhos que os velhos lhes emprestam, vão para partidos e abraçam ideias com um século de atraso, como se o mundo fosse um museu e estivéssemos numa secção estanque. Até o nacionalismo está aí, tão obsceno num jovem, o anti-ianque, o anti-alemão, o anti-europa, o anti-outro... As palavras de ordem são “ais”, suspiros de velha. Estão a destruir tudo o que foi construído, queixam-se os imberbes reaças que querem remendar o dique que rebentou por todos os lados sonhando com outro igual ao que nos pôs aqui, igual ao que os velhos vos deixaram e que vos mantém à margem do vosso futuro. Agarram-se ao passado e passam ao lado do presente. Gosto muito do 25 de Abril, mas foi em 74 e o Portugal de hoje, mal ou bem, também é resultado desse 25 de Abril. Este governo é o resultado desse 25 de Abril. O anterior também. E o antes desse também. E antes desse, idem. Respeite-se o passado, aprenda-se com ele, mas libertem-se, cortem o cordão e interrompam a sequência, não deixam que os velhos vos convençam que o vosso trabalho, a vossa missão, é acabar o trabalho que eles deixaram a meio, entregando-vos bandeirinhas, palavras de ordem, ideias, cartilhas, cartões partidários e um posto na secção distrital, na lista, no parlamento. Enquanto brincarem a reenactments de abriladas e verões quentes, enquanto estiverem cheios de saudades de ideias paridas há mais de cem anos, ideias que vos foram metidas na cabeça como o catequista mete o Inferno e o Jesus na cabeça da criança na catequese, não podem fazer parte de um 6 de Fevereiro de 2017, um dia que precisa de jovens aqui neste velho país de velhos.
6 comentários:
Demorô!
Sim, sim. Não façam como acham e pensam que é melhor façam como eu acho, eu é que sei, mesmo que não dê um único argumento para isso. Ser velho é mau, ideias velhas é mau, ser novo e moderno é que é bom. Olhem para alfama e depois para as amoreiras e percebam.
Tudo ao lado.
De que 25 de Abrili falas? Do golpe de estado naquela madrugada de 74. ? Da Revolução que se lhe seguiu? Do Prec? Ou da III República que instituiu um Estado Liberal e parlamentar em linha com o Ocidente democrático?
Se achas que a revolta presente é fingida é porque não entendeste nada. Se pensas que a classe média urbana não se pode revoltar sem pastiche e que só a working class da Brandoa o pode fazer convincente, então compraste os mesmos "espantalhos" comuno-bloquistas que criticas. Esses da elite à rasca são fundamentais como força peticionária ou de protesto. Estiveram lá, os queques, na Fonte Luminosa, quando foi preciso chamar todos à rua e impedir que o país fosse Cuba.
Sobre ideias antigas - tem mais cautela - a democracia representativa também o é e de séculos.
Minha mãe quando jogava no Totoloto antigo em que era preciso marcar cruzinhas num boletim quadriculado, depois de verificar que não havia ganho nada, dizia-me desapontada que a chave sorteada tinha acertado nos números vizinhos dos que havia marcado. "Tudo ao lado meu filho, tudo ao lado."
Era então preciso voltar a tentar. Volta.
«Nem sequer temos um poeta, um cantor, temos Geis e temos Deolindas e eu tenho vergonha alheia. (...) Mais depressa o trovador do nosso tempo vem da Damaia ou da Amadora do que da medíocre jovem elite à rasca.»
E está tudo dito.
Boa, Tolan.
O diagnóstico do Tolan parece-me bastante certeiro. O clamor da revolta é geralmente expresso na gramática dos velhos, sem que isso represente mais valia de perspectiva ou discernimento. O que não é para admirar, se olharmos para o elenco de figuras rombas que tem pontuado o nosso percurso colectivo. Pelo contrário, há um enviesamento que dificulta o entendimento do presente, já que os instrumentos disponíveis são um punhado de mitos e fantasmas, habitualmente transpostos para os dias que correm com grande economia de rigor e perspicácia. O 25A mítico está cristalizado num sistema de discursos e liturgias gastas. Vai ser difícil entender o 6 de fevereiro, vai, e não faltarão as descrições em que os nomes dos personagens saem todos trocados.
Lino,
O Tolan fala do 25 de Abril de hoje, isto é, depois de ter sido mitificado como todos os acontecimentos daquela natureza o são- arrisco a dizer- quase forçosamente. A oportunidade é péssima apenas devido ao contexto que atravessamos em Portugal e onde a revolta e mal estar pela desagregação social é evidente. Se achas que os instrumentos disponíveis de análise são fantasmas e mitos, o problema será teu e não da realidade como é criticada pelo Tolan.
Agora um conselho aos dois, mesmo não sabendo ao certo do que falas quando escreves "velhos," Cuidado. Um conservador fala-vos; é melhor uma velha boa ideia do que uma nova muito má. Apesar de, também isto não vir muito a propósito, as ideias que se digladiam no discurso público são claras e muito, muito velhas. As do Governo, por exemplo, são-o e já de barbas.
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