sábado, 23 de fevereiro de 2013

espírito

Dankozyn, Spirit Animal Collective

A decisão de incluir o fantástico numa obra de ficção, muda-a completamente. Há uma barreira de cinismo e cepticismo que os adultos desenvolvem e que o autor tem de ser respeitar como um adversário. Como tal, a verosimilhança é essencial, mesmo na fantasia e essa verosimilhança depende das regras que o autor criar. Claro que há casos perdidos, oiço pessoas (horríveis) dizer que "não gostam de fantasia" quando rejeitam histórias que tenham monstros, fantasmas, vampiros, animais falantes, feitiçaria, ficção científica... Contudo, são casos raros, acho que a maior parte de nós tem saudades da predisposição para acreditar em tudo que tinha em criança. Era uma predisposição um pouco ambígua, porque não era o só Pai Natal, cidades de lego animadas ou cães falantes por telepatia... Também havia o lado do terror, do medo, um medo real e intenso. 

Eu vivia numa velha casa do campo, com tecto em madeira, roído por térmitas, percorrido em tropel por grandes ratos a meio da noite. Na sala, um relógio de pêndulo enorme a quebrar o silêncio com um tic tac tão alto que me ensurdecia e uma salamandra que rosnava chamas como uma porta do Inferno. E aranhas, muitas aranhas, por todo lado, nos troncos da lenha, nos cantos do quarto, no meu ombro, de patas peludas, a caminhar em direcção ao meu pescoço, sentir aquela comichão leve, aquele tactear de veludo... Quando o vento soprava, a casa rangia e gemia. Tinha sido utilizada como escola primária e estava cheia de fantasmas de crianças de outros tempos. 

Naturalmente, os meus pais, ao regressar do trabalho à noite, encontravam-me muitas vezes no pátio, ao frio, de pijama, roupão e chinelosDeitado na cama  via os faróis de um carro solitário filtrados pelos buracos dos estores (aquela maldita última secção que nunca se fechava completamente) e os pequenos rectângulos de luz, projectados nas parede, deslizavam ao som do carro a passar, iluminando, em breves relâmpagos, os olhos de plástico dos animais de peluche. Escondia-me debaixo dos lençóis, morrendo de calor, convicto de que eles se animavam quando eu não via e dançavam em rituais macabros, preparando-se para me sacrificar ao grande Deus dos Bichos de Peluche. 

Mais tarde, venci estes terrores com um truque bastante engenhoso. Sempre que sentia medo, imaginava-me a mim mesmo como um mau, como um espírito feroz, desejoso de encontrar uma vítima. E caçava na noite. Escondia-me em arbustos, com a cara suja de cinza da salamandra ou então com um capuz branco com buracos para os olhos... Muitos sustos apanhou a minha pobre mãe, a regressar da adega à noite com o cesto de lenha cheio debaixo do braço e que, depois, eu tinha de encher de novo, com ela a tentar repreender-me enquanto recuperava o fôlego. Graças a essa terapia, fui perdendo o medo da noite. A minha mãe, coitada, foi ganhando o dela, passou a gritar "tás aí? não te metas com parvoíces" de cada vez que passava por sítios escuros e não me via em lado nenhum, o que demonstra que qualquer adulto tem potencial para regredir aos mundos de fantasia de novo.

6 comentários:

Anónimo disse...

Nice one. Mas a título de exemplo li o O Segredo do Bosque do Dino Buzzati há um mês e admito que me custou até entrar no espírito. Acho que gosto do fantástico, mas depende da tónica geral da obra. Se for uma obra fantástica sobre a "natureza" é provavelmente qualquer coisa que não aprecio. Como aquele coiso do Princesa Mononoke. Mas se por exemplo for o outro o spirited away, já consigo papar. Não é o "fantástico" em si. É o que tema central do fantástico.
R.

Isa disse...

"uma salamandra que rosnava chamas como uma porta do Inferno"

és um génio
<3

R. disse...

:-)

A senhora tua mãe nunca, com o susto, te atirou um pedaço de lenha?

R.

Anónimo disse...

ugh

Anónimo disse...

Olá Tolan. Gosto muito de o ler, mas parece-me que desta vez o Tolan, ao querer apontar para um estilo "literário", falhou, e acabou por produzir um texto algo enfadonho.

P.S. - Ainda que o faça com a melhor das intenções, não posso deixar de me recriminar por só ter sentido necessidade de comentar um texto seu quando lhe quis apontar uma falha. Infelizmente é uma marca do meu feitio. Se porventura lhe sou desagradável peço desculpa. Olhe, se lhe serve de consolo, digo-lhe que ninguém mais do que eu foi é e será prejudicado por esta falha de carácter que já tantos dissabores me trouxe na vida.

Desejo-lhe uma continuação de boa noite dos Óscares.

Tolan disse...

ora essa anónimo, eu próprio não fiquei satisfeito com o texto :\ no meu caso, não por ser enfadonho, mas por estar partido em dois e disperso, acho a 2ª parte boa, mas incompleta... e fiz outro com o mesmo tema, enfim...