Estou cheio de pressa pela a8 e depois de Torres Vedras vejo um cão na berma da autoestrada. É dia de caça, é comum nos dias de caça aparecerem cães perdidos. Parece-me um setter irlandês, tem o pêlo sujo de lama e está parado e confuso na faixa de segurança. Vou a 140km/h travo e ligo as luzes de emergência, tento sinalizar aos carros atrás de mim para abrandarem. O cão continua parado, a olhar para o outro lado da estrada, tem o focinho branco e o pêlo das orelhas cheio de pequenos cardos da vegetação rasteira. Passo por ele e hesito, devia encostar, mas tenho um carro atrás de mim, imagino o cão a fugir de mim para o meio da estrada e eu a ser o responsável pela sua morte e por um acidente grave. Enquanto hesito já avancei uns 500 metros é impossível voltar atrás e perco o cão do retrovisor numa curva, ele está no mesmo sítio, a olhar para a outra berma.
Passo o resto da viagem sentindo-me um cobarde. Abro o porta luvas, está lá o colete. Visualizo-me a ter o reflexo rápido de abrandar até parar, se possível antes do cão, na berma, vestir o colete e depois aproximar-me dele lentamente. Ficar a uma distância segura. Conheço muito bem os cães, cresci com cães. Não quero que se assuste, tem de ser ele a avançar para mim. Imagino-me ali a chamá-lo com voz doce.
- Anda, anda, vem...
Ele avançaria, uma pata, depois a outra pata no asfalto quente. Tem as patas feridas e doridas de andar perdido o dia inteiro. Estico a mão para ele se aproximar e cheirar. De vez em quando tem um sobressalto, como quando passa um grande camião. Está cada vez mais perto. Quando está ao meu alcance, lanço-lhe a mão à coleira. Ele assusta-se, mas depressa o agarro contra mim e levo-o para dentro do carro, que fica cheio de lama e pêlo. Por fim sossega, fica quieto e adormece. De vez em quando abre os olhos e vê-me a conduzir, depois fecha os olhos outra vez, está exausto. Digo-lhe palavras num tom de voz meigo e calmo.
- Então? Estavas perdido meu pateta? Ias sendo esborrachado. Não sei se a minha mãe te vai querer aceitar, ela já tem lá três cadelas em casa, duas delas também eram vadias como tu...
Saímos da autoestrada e entramos na sinuosa estrada de caminho à aldeia. Abro um pouco a janela e o cão fareja o ar, não parece reconhecer os cheiros, não deve ser da zona. Seja como for, nem me vou preocupar em devolvê-lo ao dono. É um cão bonito e inteligente e vê-se que está habituado a andar dentro do compartimento das pessoas e não num reboque. Ainda não sei, naquele momento, mas a minha mãe não pode ficar com mais um cão e que é uma enorme confusão com as três cadelas que costumam ter o cio sincronizado e acabo por ficar com ele e levá-lo para Lisboa. Como não tenho vida para ter cão, despeço-me do emprego e vou viver para um sítio onde possa passear com ele e sou muito feliz.
Mas nada disso é real, deixei o cão, abandonei-o naquela berma e, ao almoço, enquanto como a sopa e provo os bons vinhos, não falo muito, não me apetece falar da semana, das viagens ao brasil, da vida. Não conto o sucedido à minha mãe porque ela tende a chorar quando se fala de histórias tristes com cães (muito mais do que com pessoas). Em torno da mesa, cães deitados aguardam pela sua refeição.
17 comentários:
porra pois é, cenas com cães são do pior pra ser triste. pode parecer ironia, mas salvaguardo, não é.
Que triste. Sincero e bonito, mas triste. Também não tenho vida para ter um cão, com muita pena. Mas espero sinceramente ter um dia. Tens de pensar assim também.
e eu fiquei com vontade de chorar. tão triste.
bom assunto. aconteceu-me o mesmo no outro dia. qual é a atitude certa a ter? parar no meio da auto estrada, arricando-me a ser atropelada, a provocar um acidente e o cão a morrer na mesma? eu tambem fico sempre com sentimentos de culpa, mas não consigo fazer nada. ligo para o 112 e digo que está um cão na estrada. normalmente exagero a situação, digo que ele vai no meio da faixa, que os condutores se estão a asssustar e que vai haver um acidente de certeza. senão ninguém quer saber. mesmo assim, provavelmente ninguém quer saber. isso são coisas para me estragar o dia.
um dia vi um gato assim na aep. como não consegui parar a tempo (quando me apercebi já estava bastante longe), fui à rotunda, dei volta, fui à outra rotunda e dei a volta (é uma estrada com separador nas faixas de rodagem) para tentar chegar a tempo de salvar o gatinho. quando cheguei estava completamente esmagado. entrei no escritório desfeita em lágrimas. antes não tivesse tentado nada, sei lá. pelo menos morreu de uma vez, que é melhor que ficar a morrer aos poucos na berma da estrada, às vezes dias e dias. bah...
Isso é horrível... deves tar tristíssimo... sou incapaz de não parar... um dia encontrei um no meio duma curva em pânico já todo vomitado... não lhe passei por cima por acaso... fiz marcha atrás liguei os 4 piscas e meti-o no carro... o bicho tremia que nem varas verdes... era noite e se ali ficasse no meio da estrada ainda por cima numa curva alguém com mais velocidade passava-lhe por cima... levei horas para o conseguir tirar do carro... não podia ficar com ele que lá em casa já haviam 3 levei-o ao vet e deixei-o lá para adopção... antes isso que imaginá-lo diariamente a ser esmagado!!!
Outra vez adoptamos um bezerro que o pai atropelou... alimentei-o a biberão durante uns meses até q um dia enquanto pastava o cão do vizinho da frente atacou-o de tal forma que tivemos de o abater na hora. :(
Confesso que sou como a tua mãe... choro mais pelos animais q por pessoas!!! :|
:/
Mas vocês tentam parar o carro e apanhar os cães (a minha mãe é dessas), eu nunca tive esse reflexo mas para a próxima... este texto é um reminder.
isto já foi há quase um mês (demoro tempo a processar as coisas)
oooh, isto hoje está mau. és mau Tolan
Também é coisa para me deixar com o peso do mundo nos ombros...
Para cães de raça e bonitos é fácil arranjar adoptantes. Não sei se serão os melhores dos melhores donos (por se preocuparem com o aspecto e raça do cão) mas sempre é melhor que estarem desorientados à beira da AE.
era só um cão, qual é o problema?
Tambem já passei por uma história parecida. Ao pé de minha casa há um prédio muito velho e moradores igualmente velhos. Um dia ao passar à frente desse prédio estava um cão rafeiro e com uma doença de pele que não me queria deixar passar. Eu tentava passar pela direita e ele desviava-se para esse lado, para a esquerda a mesma conversa. Olhava para mim e olhava para a porta. Percebi a mensagem "Abre-me a porta". Tentei tocar à camapaínha mas não havia campaínhas pelo que não me restava alternativa senão bater. E ali estive perto de 40 minutos a bater, a chamar, a atirar pedrinhas às janelas. Entretanto chegaram uns moradores desse prédio e disseram que o cão era do "velho" (foi dito assim mesmo) do terceiro. Pedi que deixassem o Cacau entrar(eles sabiam o nome do cão) para não ficar na rua à chuva mas aqueles ANIMAIS (que não tinham outro nome) enxotaram o cão com os pés e não o deixaram entrar com o argumento que estava doente e ainda pegava a toda a gente, mesmo sabendo que o cão tinha dono e que provavelmente estaria à espera dele. Fecharam-nos a porta na cara e ali ficamos, eu e o Cacau à chuva. Fui para casa a remoer-me de remorsos e e lembrar-me da carita de trinteza a olhar para mim a ir-me embora!
fiz várias viagem pela A8, há um mês. Não vi nenhum cão atropelado. Teve sorte, às tantas.
tolan, escreve outro texto, este deixa-me triste sempre que vejo só o título.
2 hipóteses:
1- Vês o km, ligas para o número de apoio a autoestrada... Exageras e dizes que se houver algum acidente, vítimas mortais, chapa..., tu testemunhas que eles foram avisados, logo a concessionária é responsável...
2- Ligas 112, voltas a exagerar, dizes qual km, autoestrada, etc, afirmas que de certeza vai haver um acidente, vítimas mortais, chapa...
Nunca em caso algum te deves mostrar preocupado com o cão, sempre com as vítimas humanas...
Para o anónimo do "é só um cão"
é exactamente o facto ser um cão que nos preocupa... se fosse uma pessoa orientava-se e ia para casa... infelizmente os animais não têm a capacidade de se defender como os humanos! ;)
Acho que isto que descreves já aconteceu a toda a gente. Se for numa auto-estrada, como foi o meu caso, o tempo que demoramos a decidir páro-não páro, é tempo suficiente para o carro se afastar e não fazermos nada.
Ultimamente encontro um cachorro todas as manhãs quando saio para correr. Deixa-me doente. Aí não vou de carro, estou a pé e passo junto dele, está magríssimo. Ando a tentar encontrar-lhe um dono, mas ainda não tive sorte, quero dizer, ele ainda não teve sorte. É um perdigueiro novinho e com aquele olhar de cachorro abandonado, literalmente… Eu já tenho em casa um labrador com 47 kg e energia a rodos, não posso ficar com este pequeno esqueleto andante. Por isto me custar muito, tento ignorá-lo, tenho medo que o meu olhar se demore demasiado no dele, levava-o para casa na certa.
É triste que haja tanta gente a pensar como o anónimo das 13:06.
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