quinta-feira, 25 de agosto de 2011

o amor, o amor

'Tens de mudar' disse-me ela. 'Tenho de mudar' concordei. Depois disse-me 'estou a falar a sério' e eu também concordei. Já sabia que ela estava a falar a sério logo da primeira vez. Quando ela falava a sério, cruzava os braços e ficava em pé, muito direita, às vezes em frente à televisão e então eu morria se estivesse a jogar playstation, a um jogo de guerra online em que nem dá para fazer pause. Mas não protestava por ter dado cabo do meu score.

'Nunca saímos, nunca vemos pessoas' disse-me ela. 'Temos de sair e ver pessoas' sugeri como solução. Pensei que era o que queria ouvir. Mas não devia ser isso porque se pôs muito direita e cruzou os braços. Depois disse-me 'então na próxima sexta feira vens comigo ao aniversário da Vera'. 'Quem é a Vera?' perguntei, a sentir-me nervoso. 'É uma amiga do trabalho, ela fica chateada se eu não for'. Então disse que sim, para irmos lá ao aniversário da Vera, mas não devo ter sido credível porque ela insistiu no tema 'nunca saímos, nunca vemos pessoas'. Não percebo porque motivo eu tinha de ver pessoas. Ela não podia ir ver as pessoas dela em paz? Então disse-lhe 'a vida é minha, sabes? não é a Vera que dispõe do meu tempo. Nem tu'. Saiu da sala, foi para o quarto e fechou a porta. Sabia que ela estava a chorar um bocadinho porque quando ia para o quarto era quando ia chorar um bocadinho, sentada na cama. Comecei a sentir-me culpado e a cerveja já nem me estava a saber bem. Nessa sexta feira acabámos por ir ao aniversário da Vera. Até foi agradável e no caminho de volta até lhe disse 'foi agradável, temos de repetir'. Mas nunca mais fui a nenhum.

'Nunca fazemos amor, não pode ser' disse-me ela. 'Temos de fazer amor então, vai para o quarto e prepara-te' disse-lhe, com a melhor das intenções. Mas ela cruzou os braços e pôs-se direita, a mordiscar as bochechas, como que a conter raiva. Não me parecia lá muito excitada e com vontade de fazer amor. Então perguntei-lhe 'O que foi? Queres que ponha música? Queres que te diga coisas queridas como da outra vez?'
'Qual outra vez?' perguntou ela com a voz a falhar. Lembrava-me de lhe ter dito coisas queridas e achei aquilo um bocado injusto. Lembrei-me de uma coisa que lhe tinha dito: 'Estou apaixonado por ti, quero viver contigo para sempre, quero estar dentro de ti todos os dias, quero fazer-te vir sempre para mim e que sejas minha e ser teu.' Era mais ou menos assim, citei de memória. Foi para o quarto e fechou a porta. Ainda hesitei. Tinha ido chorar sentada na cama ou o meu discurso tinha surtido efeito e queria fazer amor? Nunca soube.

Então um dia quando cheguei a casa ela estava a fazer as malas. E estava a chorar e nem era só dentro do quarto e sentada na cama, era pela casa toda. Eu conseguia perceber porque estava a fazer as malas, mas não conseguia perceber porque estava a chorar outra vez. 'Muito choras tu' disse-lhe. Também reparei que estava a arrumar alguns livros que acho que eram meus mas não lhe disse nada, deixei-a levar aqueles livros. Até fiz mal porque um deles era de uma editora que depois faliu e nunca mais o vi à venda.

Depois saiu e bateu com a porta e a casa ficou silenciosa e muito quieta. Sentei-me no sofá mas não liguei a televisão. A noite caiu sem eu dar por isso e tudo começou a ficar escuro e não me levantei para acender as luzes. Começou a chover. Começou a chover ainda mais. Chovia tanto que já entrava água pela fresta na janela da varanda e ouvia o som de pneus de carros a fazer ondas em poças de água na rua. Depois saí à rua e fui comprar cerveja e um mcmenu e voltei para casa, todo encharcado, mas contente por ter conseguido sair à rua. Fui só espreitar ao quarto, pelo sim, pelo não. Não estava lá. Sentei-me na cama. Estava fria.

22 comentários:

mim disse...

Não sei se é história, se é imaginação..

Mas isto foi o que (mais ou menos) me aconteceu.. e também deixei a porta destrancada. À espera de ouvir uma chave a rodar..

E é uma grande m*.

Andorinha disse...

Há coisas que deviam pura e simplesmente ser fáceis. Depois há a realidade. Bom texto.

Maat disse...

já dizia uma amiga minha que mulher não precisa de razão pra chorar.

nos últimos dois parágrafos fizeste-me lembrar o boris vian.

Very disse...

BRUTAL!!! PARABÉNS!

Anónimo disse...

Genial, como sempre. Não fosse eu casada...
LadyH

ANGIE disse...

"Também reparei que estava a arrumar alguns livros que acho que eram meus mas não lhe disse nada, deixei-a levar aqueles livros. Até fiz mal porque um deles era de uma editora que depois faliu e nunca mais o vi à venda."
Muito bom!

Anónimo disse...

gosto muito de ti, tolan. o ultimo paragrafo fez-me sentir cenas, portanto deve ser bom. estou falar principalmente do mac menu (se fosses realmente ao mcdonalds sabias que é mcmenu) e do som dos carros. gostei muito, devias combinar uma sessão de abraço conjunto para nós, teus leitores que gostamos tanto de ti, te abraçarmos e mimarmos muito. não estou a falar de sexo de grupo, isso dá doenças, apenas afecto.

Tolan disse...

corrigi a cena do mcmenu.

Tolan disse...

"sexo de grupo" é muito bom.

Anónimo disse...

é um trauma que tenho com os 'trabalhos de grupo'

Vareta disse...

Boa, moço. O teu narrador é, o mais das vezes quando escreves em sério, sempre um fulano com um timbre americano. Mas felizmente o teu sentido de humor é europeu (da europa do sul), como europeia é a tua falta de paciência.

O que faz de ti um escritor... italo-americano? Um Rocky Balboa das letras?

Maria disse...

Escrita excelente, é verdade, mas parece-me que o Tolan está cada vez mais triste e deprimido...

a.i. disse...

Tolan Tolan, tu dás-me vontade de gritar CASA-TE COMIGO Tolan, mas como já disse uma vez (acho) estou a brincar, isto é apenas motivado pelo prazer que me dá ler o que escreves.

Rosa Cueca disse...

Gostei muito. Até porque retrata uma coisa chata no mundo dos gajos, que é deixarem andar a ver se passa. Nós falamos muito, mas quando deixamos de falar...é muito mau sinal. ;)

Lótus disse...

Que sina...este Amor.

Unknown disse...

Ai Tolan... Tolan ...que te sirva de exemplo !!!

[ senhores o que eu me ri agora :D]

Anónimo disse...

Às vezes a tua prosa soa como se fosse uma tradução manhosa daquelas tipo livros do Brasil. Uma coisa é gostarmos de escritores estrangeiros, outra é reproduzirmos o estilo artificial que resulta das suas traduções.
Há que adaptar a coisa ao vernáculo senão soa tudo a falso. Mas enfim, talvez me engane... Se calhar um gajo pode construir um estilo a partir da literatura traduzida. É possível. Tudo é possível. Isto do estilo e das traduções são assuntos maiores, complicadíssimos. (Atenta no Luiz Pacheco, já agora: aquilo é português, foda-se! A sintaxe e vocabulário são indígenas até ao tutano e o estilo é o dele próprio! I.e., trata-se de um escritor!)

Tolan disse...

caro anónimo, perdi 20 minutos a tentar alinhavar um comentário sucinto de resposta mas entretanto desisti.

Anónimo disse...

Deixa-lá. Era só para meter conversa. Toma lá uma coisa em grande estilo: http://youtu.be/UyDqULz9ECc

Campeão disse...

Vai ser difícil encontrar texto que não tenha tamanha inveja de não ter escrito.

Apple disse...

Gosto muito da tua prosa com um sabor a desencanto (também gosto das outras linhas que me fazem rir, mas isso fica para outros comentários).

mcrs disse...

Porra pá, pega nela e vai fazer amor.

Que bambi.