No Guerra e Paz, o príncipe Bolkonski é austero, disciplinado, paranóico e tortura psicologicamente a filha Maria, acusando-a de todos os defeitos possíveis e de conspirar contra ele, de ser mal intencionada.
Esta, em total abnegação, sente que é seu dever amar o pai e suportar todas as provações, esforçando-se para as ver como manifestações de um amor que o seu pai não sabe expressar de outra forma e sentindo-se culpada quando o recrimina mentalmente por a fazer sofrer de forma tão gratuita e maldosa.
Com a aproximação das tropas de Napoleão, Bolkonski tem uma apoplexia e fica moribundo e Maria vê uma hipótese de libertação, começa a fantasiar com uma vida completamente diferente em que é livre da opressão do pai e se poderia apaixonar, ter uma existência normal. Esta súbita esperança que o pai morra causa-lhe sentimentos de culpa terríveis mas convive ambiguamente com uma sensação euforia pela liberdade próxima.
O pai emerge do coma por instantes, o rosto encarquilhado, transformado, tenta balbuciar algumas palavras e quando consegue falar, no leito de morte, pede desculpa à filha e diz que a ama muito e pede-lhe para vestir um vestido que lhe fica muito bem. A filha desmancha-se em lágrimas e quando volta ao quarto, o pai morreu, instalando-se nela outro sentimento de culpa: 'como pude desejar a morte dele?'
Sintetiza-se aqui um dos grandes mistérios humanos e que alguns de nós experimentámos, numa ou noutra posição (Bolkonski ou Maria): a de que o comportamento reflecte exactamente o oposto daquilo que no íntimo sentimos, como se fossem reflexos instintivos de defesa do afecto do outro.
Acredito que esse comportamento é inconsciente e ao gerar ressentimento do outro e a sua subjugação (o outro fica triste, é magoado), vai construindo uma situação impossível de quebrar.
A sua alteração implica o sentir de uma dor imensa e - inconscientemente, creio - o comportamento continua e ainda se agudiza mais. Pode ser um teste de amor (podem amar-me, sendo odioso, sendo 'eu'?). Ou o outro perderá o afecto por nós e libertar-nos-á do sentimento de culpa, visto que não nos dirá nada por nos ter abandonado? Ou será um desejo de se ser odiado porque sentimos que é o que merecemos, não somos dignos de gostarem de nós?
Aqui (e em muitos outros episódios do Guerra e Paz) está a ambiguidade do comportamento humano, o hiato entre o que sabemos ser 'o melhor' ou o 'justo' ou o 'sincero' e aquilo para que somos impelidos de forma quase animal, irracional e auto-destrutiva. Seja no jogo, no amor, na família, o homem por vezes segue em piloto automático como se, fazendo exactamente a mesma coisa constantemente, tivesse esperança que algo se rompesse, a esperança que, atingindo-se um limite absoluto, isso o fizesse mudar ou fizesse as pessoas verem-no como ele é, dentro da prisão da sua natureza humana que o faz parecer e sentir-se detestável.
4 comentários:
Sim, é absurdo!
Mas nenhum romance poderá alguma vez explicar o absurdismo da existência ou da natureza humana.
Para tal, terá de se voltar para a filosofia - para a qual já está claramente inclinado e daí as questões que partilha com os leitores.
Sobre esse assunto, suponho que "O Mito de Sísifo" de Albert Camus estará nesse caminho - mas requer um estômago forte.
Não se procura uma explicação nem Tolstói a tenta :) é preferível um copinho de vinho, uma boa companhia.
Ah...chafurdar no lodo então, mas ao menos alegremente.
:)
Bom texto.
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