A tentativa de ser jogador de poker profissional online foi uma boa terapia. No online jogamos milhares de mãos em pouco tempo e isso dá uma perspectiva da "sorte" e do "azar". Os ganhos e perdas estão fortemente correlacionados, no longo prazo, com a justeza das decisões que tomamos e, no longo prazo, toda gente tem a mesma sorte e o mesmo azar. Ou seja, o azar não é uma coisa pessoal ou intencional.
Na vida, as coisas são mais complicadas e complexas porque as perdas - especialmente as perdas - são potencialmente infinitas. E não é verdade que esse azar esteja uniformemente distribuído por todos nós como está no poker. No nosso curto tempo de vida não jogamos 200 mil vezes a mesma situação até ter exactamente a mesma sorte que o vizinho do lado. Existem acontecimentos pontuais que simplesmente acabam com o jogo (por exemplo, vir um camião fora de mão direito a nós porque o condutor adormeceu) ou nos deixam marcas permanentes.
Temos de ter cuidado a definir o próprio azar. Antes de azar existirá um conceito de condição adversa que nos é completamente independente, como o pneu de um carro estoirar ou ter José Sócrates como primeiro ministro. Isso podemos chamar de azar. Mas se vamos com o cinto ou não, se vamos a 120km/h ou 220km/h, já depende de nós.
O saldo sorte / azar da vida tende fortemente para o que compreendemos como azar. Porque para nós, azar é uma coisa que nos prejudica, faz mal, deixa tristes, magoa, empobrece, aborrece, irrita, enfraquece etc. E há muito disso e de cada vez que acontece, faz-se sentir. E não vemos a sorte invisível à nossa volta. Podemos ter passado ao lado do camião com o condutor quase adormecido e mesmo no momento em que ele ia adormecer o rádio deu uma música mais espevitada e ele caiu em si e abriu as janelas ou podemos ter tido o José Sócrates e não outro ainda pior que podia ter-se filiado no PS ou outro ainda pior que não nasceu e que teria levado o PNR à maioria absoluta com o apoio dos portugueses que comentam os jornais online. Podíamos ter tido leucemia aos 8 anos se uma determinada célula de medula se tivesse mutado da forma errada e não mutou, apesar de ter estado quase, quase. Como essas coisas são invisíveis, não temos o reflexo de pensar que de cada vez que algo não corre mal, tivémos sorte. No poker vemos porque quando temos probabilidades boas de ganhar e ganhamos, sabemos que aquilo podia não ter corrido assim daquela vez, como acontece 2 ou 3 vezes em 10 ao fim de mil jogadas iguais.
Portanto, pode ter razão aquele cristão que agradece todos os dias à divina providência o facto de estarem todos vivos e de haver comida na mesa, enquanto que a nós, intuitivamente, nos pareceria que se há comida na mesa é porque ele trabalhou para a ganhar e se há saúde, é porque as pessoas daquela família comem as coisas certas e fazem exercício físico.
O problema de pensarmos que controlamos demais as diferentes variáveis da nossa vida é o de isso gerar uma frustração enorme quando as coisas correm mal. No poker chama-se a isso tilt. Mesmo o jogador mais calmo e zen tem tilt ocasionalmente se for sujeito a uma sucessão de azar que parece desafiar as regras da lógia. Se em 10 jogadas, em vez de só perder as previstas 3 ele perder 10 (esquecendo-se que umas semanas antes ganhou 20 sem perder nenhuma) é possível que comece a ficar alterado.
E quando se altera começa a tomar más decisões e a ficar cheio de um sentimento autodestrutivo: ele não quer saber do resultado e desafia a sorte e o bom senso, vingando-se da sorte ao agir sem lógica e sem amor próprio, com pena de si mesmo. O poker tem a vantagem de nos podermos retirar da mesa se conseguirmos pelo menos identificar que estamos assim, em tilt. Um bom jogador reconhece sinais do tilt e abandona a mesa ou relaxa precisamente por reconhecer esses sinais. Comecei a ganhar mais quando simplesmente desligava o pc depois de momentos de azar e ia apanhar ar ou beber uma cervejinha e relaxar. Na vida não. A vida é uma chatice do caraças neste aspecto porque não nos podemos retirar da mesa.
Contudo, temos tantas vezes a ilusão de nos retirar da mesa. Uma depressão é um retirar da mesa visto que os sintomas incluem isolamento e perda de interesse por fazer coisas. Um desgosto ou uma desilusão de amor também pode gerar essa vontade de nos retirarmos da mesa e deixar-nos num estado de tilt permanente. Contudo, só passamos de uma mesa para outra, estamos sempre vivos, vamos para outro jogo, um jogo bem mais desinteressante em que a única certeza é de não perder tudo depressa, mas sim devagarinho, sem dar por isso.
Este foi o momento anual Doctor Phil deste blogue e pelo facto apresento as minhas sinceras desculpas.
7 comentários:
Não percebo patavina de poker. Maneiras que fiquei-me pelos ursinhos cutxi cutxi...
Escreveste um dos teus melhores textos do ano, e encheste esta cena de ursinhos. Tira os ursos, vá lá, que tu queres audiência de quem te lê, não é de quem "visualiza".
Nunca pensei que o poker pudesse ser um jogo tão acertivo. Eu acho que o dia e o número 13 dão sorte. Poucos são aqueles que conheço que possa dizer que sejam "azarados". Tb te posso dizer que a pessoa que conheço que mais "azares" já suportou(perdeu o Pai e os 2 irmãos, o Pai com 40 e poucos e os irmaos cada um aos 21 anos-deles), é a que mais sorri de todos os meus amigos e a que mais sorrisos conquista. Se calhar acha que é uma sorte ter escapado. Eu acho que ela tem razão, só não sei é como é que ela aguenta tanta dor. É a minha heroína, se é que tenho uma.
Txiiii pá, agora esmeraste-te! Estou cheio de inveja, já me estragaste a noite...
Muito bom, muito bom!, obrigado por documentares isto para a eternidade.
Gostei muito. Surpreendente, cativante, apaziguador e com fibra.
E agora vou ler.
eu continuo a achar que a relação que os seres humanos têm com a sorte e o azar está de alguma forma relacionada com a religião. para acreditar que o azar nos persegue, por exemplo, é preciso, não acreditar, mas pelo menos admitir a hipótese, que uma força sobrenatural qualquer está a conspirar contra nós. A verdade, porém, é que para os verdadeiramente crentes não existe essa coisa de "azar" e "sorte", apenas existe a recompensa ou o castigo do criador. Pelo que o que acabei de escrever não faz sentido nenhum... eis pois o meu contributo à discussão. Não têm nada que agradecer.
Caramba, as imagens são fantásticas.
Vá, o texto também é fofinho.
:)
Muito bom!
No fundo, segundo a tua lógica, ter um encontro com uma gaja é como jogar um pocket pair para set mining. A jantar até está a correr bem, encaixamos o trio do flop, e o coito concretiza-se no final da noite.
No river recebemos um telefonema a dizer: estou grávida.
Ou a gaja deu call até ao fim com uma draw qualquer que acabou por bater ou então acabámos de ser vítimas de set over set.
Em qualquer um dos casos, bonito.
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