Fascina-me o modo como Mark Twain consegue recriar o seu universo infantil no Tom Sawyer sem ser declaradamente autobiográfico, apesar de Sawyer ser ele e mais duas outras pessoas, mas sobretudo ele, e de tudo se passar nas margens do seu Mississipi de infância e de conter uma sátira muito pessoal.
Mark Twain utiliza uma técnica que também vemos em Walt Disney e especialmente nas bds do "tio patinhas" de Carl Banks que organizam aquele universo. Tom Sawyer não tem história. Não tem mãe (sabe-se que é orfão) e do pai nem se fala. O que é fascinante é que isso nunca surge nas reflexões de Sawyer: ele nunca cai numa melancolia ou numa reflexão sobre o porquê de não ter mãe e pai e dos outros meninos terem. Do mesmo modo, nos Tio Patinhas, não existe uma única relação de parentesco directo: pais, filhos, irmãos. São todos primos, sobrinhos, tios, netos, avós etc. A única coisa que interessa é o momento presente, em que acontece algo, uma aventura.
Já no Huck, é totalmente diferente. O livro é bem mais intimista e uma obra digna de figurar no canône ocidental. Para além da questão fundamental de ser na 1ª pessoa, como disse no post abaixo, a figura do pai violento e bêbedo surge frequentemente e é comovente a situação de Huck. Huck não tem ninguém, não tem lar e não tem raízes, é um "bom selvagem". Tom tem uma tia que gosta dele e é um jovem mais normal apesar de tudo. Huck não é ninguém, é um cão solitário.
Nos desenhos animados da nossa infância não é pois de admirar que a figura imortalizada tenha sido Tom Sawyer e o Huck um mero side-kick simplório, o objectivo de um desenho animado é semelhante ao das bds do Tio Patinhas. A literatura é outro território.
3 comentários:
Com esta dos desenhos animados é que me lixaste que eu andava a ler os teus posts sobre o Tom Sawyer e o Huckleberry Finn deliciada por eles serem, como nunca duvidei, intemporais.
Devorei o Tom Sawyer e o Huck nas férias grandes dos meus 10 anos. Devem ter sido as férias dos clássicos porque se bem me recordo marchou também O Meu Pé de Laranja Lima e, como me sobrou praia e faltaram livros, tratei da saúde ao Papillon mas isso não interessa nada porque ali, na estante, quem está é o Tom e o Huck, em português e em inglês que os 10 anos já se foram há muito mas tudo me serve de desculpa para voltar a ler Mark Twain.
Huguinho, Zézinho e Luizinho são irmãos...pelo menos era assim que os imaginava...bolas! que mania de racionalizar tudo. Nunca mais vão ser os mesmos...eu bem sabia que não devia ler este blog!
Até podem ser irmãos, mas reparem que isso nunca é explícito. São todos primos, sobrinhos, netos... Também elimina a questão do "sexo". Se houvesse um casal com filhos as crianças podiam fazer perguntas inconvenientes :D
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