quarta-feira, 15 de junho de 2011

pêlo tóxico

Apercebi-me, há momentos, enquanto estendia um filete de cavala à gata preta esfomeada que mevoltou a arreganhar os dentes pelo 8º dia consecutivo, que não estou bem. Quer dizer, a minha situação. Não sou só eu que o vejo, vários amigos comentam-no, pelo chat do messenger ou do facebook, embora todos tenham uma impressão diferente de mim e diagnósticos também incoerentes. No pátio do bungalow só vejo um parque de estacionamento, sem carros, está deserto. Em frente ao parque há um muro alto com arame farpado que não deixa ver a vasta planície de dunas e por cima há uns cabos eléctricos onde de manhã se pendura um pássaro que não sei identificar mas que faz o mesmo barulho crruuu cruuu crruuu todas as manhãs.
Vou de bicicleta ao supermercado e encho os alforges da mesma com cerveja e whisky e carne congelada e snacks e latas de conservas. Almoço a ver o telejornal e o país parece uma metáfora de mim, é uma coisa impressionante. Às vezes pergunto-me se não sou apenas uma antena receptora de más vibrações karmikas, eu que nem acredito nessas coisas. E quase choro quando vejo os esforços de orgulho, como aquele video de provocação à finlândia em que falam nas coisinhas boas que fazem, como a via verde ou os cartões pré-pagos dos telemóveis, como crianças a mostrar garatujas e infantilidades a adultos que os censuraram.

Hoje desinfestaram o parque, um camião passou por aqui a despejar veneno tóxico na cadeira em que estou sentado e na mesa amarela onde tenho a garrafa de JB e pevides. Espero que tenha caído algum insecticida em cima da gata preta, mata-lhe as pulgas, ela... ela é rija. Apesar de recusar qualquer avanço meu para uma festinha, não sai daqui e passa os dias à espera de atum, debaixo da minha bicicleta ou mesmo em cima da cadeira, enchendo-a de pêlo tóxico. Lembra-me uma pessoa e gostava mesmo de ser amigo dela. Se calhar já somos amigos. Perdidos, perdidos, perdidos... Não consigo ver o eclipse, há nuvens, ainda pensei correr a casa da minha mãe, pedir-lhe para tirar o telescópio de dentro da adega (está coberto de teias de aranha, não lhe toco) e tirar umas belas fotos e postar aqui mas que se dane, é só uma lua e uma sombra, consigo fazer isso com uma lata de cerveja e um candeiro. Era melhor que houvesse ondas e não há praticamente ondas há 8 dias, 8 dias seguidinhos com o mar praticamente inerte e as famílias felizes a tomar banho abençoadas pela bandeira verde e eu vejo aquele mar que não quer brincar e volto a pedalar para casa, aborrecido. Tomo café na esplanada de mesas de plástico vermelho e vejo famílias e casais com cães e volto para casa. À noite leio o Guerra e Paz à luz dos candeeiros do parque de estacionamento porque acho que estar no exterior é mais saudável e esforço a vista.

Um velho anda para trás e para frente com o seu audi novo no parque de estacionamento deserto, parece hesitar em escolher um lugar, há tantos que o velho pondera e hesita, pondera e hesita, avalia as casas, as potenciais sombras do dia seguinte, e anda aos círculos e enerva-me. Finalmente estaciona e ao passar por mim diz "boa noite!" e eu respondo "boa noite" com sinceridade, sem sequer pensar nisso e sorrio, cheio de boa vontade de repente, como se estivesse sintonizado com o universo. Estendo-me na cadeira e olho as nuvens pesadas não vejo a lua mas sei que ela está lá, consigo imaginá-la.

4 comentários:

Ana M. disse...

Dicionario Kitty-Tolan:
'Apesar de recusar qualquer avanço meu para uma festinha...' - Se a kitty algum dia quiser dar-lhe a alegria de a massajar fará por isso. Até la...
'...não sai daqui e passa os dias à espera de atum' - Fique feliz pela presença da kitty e alimenta-a por isso.

Terapia da Correia disse...

Pega numa chave de fendas e lixa o Audi ao velho... Pode ser catártico.

Tolan disse...

Ana M., isso parece-se demasiado com uma mulher :\ pensei que os animais eram diferentes.

Ana M. disse...

Tem (alguma) razão Tolan, espero sinceramente não o ter desapontado. Veja de outro prisma, a kitty é genuina.