terça-feira, 14 de junho de 2011

muito gosto eu destas merdas

pronto, 7 dias ou mais, em anos cão, são 28 dias, é muito tempo (nota: em anos cão, os primeiros 2 anos de vida multiplicam-se por uma factor de 10.5, depois disso é por 4, agora ficam a saber que tenho mais de 2 anos)

Nota prévia: após ter lido mais uns capítulos, nomeadamente, o da Batalha de Austerlitz, a minha opinião sobre isto tudo, mudou, mesmo assim fica aqui o texto:

Estou a ler o Guerra e Paz de Lev Tolstoi, tradução do duo dinâmico Nina e Filipe Guerra, é uma obra esmagadora. Não no sentido dos 4 volumes que, com optimismo ingénuo levei comigo para férias, caso me faltasse leitura. O Tolstoi é efectivamente um nome que se pode pôr ao lado dos deuses do Olimpo da literatura, pelo menos, a julgar pelo 1º volume que terminei hoje. Seria de esperar que uma obra da dimensão do Guerra e Paz tivesse a chamada "palha". Pois não tem. Comparando outros grandes autores com o Tolstói ao nível de palha, é como comparar uma sala de operações de um hospital com um curral de vacas. Percebo pois que alguns (não cito nomes nem faço links mas eles sabem que são eles) digam que Tolstoi é muito superior a Dostoiévski. Pois eu compreendo que o digam, mas é estéril pensar assim. Considerando que Tolstoi e Dostoiévski são contemporâneos, este último consegue um salto para a "modernidade" na literatura pela introdução de uma componente mais visceral e, talvez, psicanalítica, que em Tosltoi, apesar de existir e ser bem evidente, não deixa de parecer "homérica", naquele sentido clássico do termo. O meu primeiro impulso genuíno - fundamentado na minha ignorância - foi o de acreditar que o Guerra e Paz era umas boas décadas anterior a um livro como o Crime e Castigo, mas não, são contemporâneos. As personagens de Tolstoi, em combate, não têm propriamente medo de morrer (no sentido existencial) mas sentem antes uma euforia ou uma honra que por vezes é confrontada com o caos e o ridículo de um ferimento ou de uma cobardia. O drama da batalha (os mortos, feridos, estropiados) desenrola-se como num pano de fundo infernal mas algo neutro.

É uma obra disruptiva face ao espírito da época (e ao próprio género 'romance') no retratar de uma sociedade em que a guerra, apesar da recente introdução da moderna estratégia (em que Bonaparte é um mestre), é para os russos uma oportunidade de ascensão e de honrarias, desenvolvida como um teatro abstracto pela alta sociedade enquanto que no terreno de batalha vive-se um caos e uma espécie de anti-climax, tão bem representado por soldados com lama até aos joelhos ou no oficial corajoso que é ferido em combate e que pensa "isto não me pode estar a acontecer".  Mas mesmo assim, é claro que na época de Tolstói a guerra era diferente ou, pelo menos, o espírito dos homens (e das sociedades) que partiam para a guerra. O Imperador Alexandre, passando revista às tropas, provoca num oficial o desejo de morrer por ele, que nada o faria mais feliz. As batalhas tinham algo de 'simbólico' e cavalheiresco, a começar pelo curioso facto de altas patentes do exército poderem ser mortas em batalha por participarem nas investidas da linha da frente e usarem sabres e de haver alguma improvisação. Temos também a sensação que Napoleão 'é forte' porque vem 'do povo'e ascendeu pelo seu próprio punho e determinação implacável. É, aliás, admirado pelos russos que, nesta altura na alta sociedade, falavam francês com muita frequência e a sua figura intensos debates, talvez um prenúncio de coisas que se iriam passar no próximo século.

Apesar da I Guerra Mundial ter sido o fim de uma inocência, vemos que mesmo na II Guerra Mundial não havia consciência do drama individual. Pegue-se no exemplo do desembarque na Normandia. Homens com passado e identidade são atirados para uma situação em que é certo que boa parte deles irá morrer anonimamente assim que sair do barco. Uns anos depois o homem ganha outro tipo de consciência (quase neurótica) quanto à própria mortalidade e liberdade.

Contudo, em Dostoiévski, essas sementes já lá estão mais visíveis, em dramas individuais, em personagens que têm dilemas existenciais profundos e que são 'modernos', aliás, aqueles temas viriam a impor-se. Em Tólstoi isto parece existir mas de uma forma implícita, o que lhe acrescenta uma dimensão clássica e porventura superior. Dostoiévski que desce à visceralidade da psique humana dos seres mais simples e oprimidos, no fundo, o povo e também a temas espirituais, éticos digamos assim. Pode ser pois o "repórter social" para o Nabokov (não linko o blogue do Nabokov, ele que arranje visitas sozinho) mas consegue criar personagens que estabelecem, ainda hoje no século XXI, uma empatia total com o leitor (ele reconhece-se nelas) enquanto que as de Tolstoi não deixam de causar algum estranhamento e até alguma inveja, como se fosse uma época para sempre perdida.

É curioso, o caminho destas coisas. A Ilíada de Homero tem batalhas mas aí só existem num plano de homens candidatos a deuses ou deuses, o resto são números abstracos. Em Tolstói, vamos até ao nível do responsável por um pequeno pelotão de artilharia, mas ainda não vi "o soldado raso" tratado com profundidade psicológica, continua a ser um número (50 mil efectivos russos contra 150 mil franceses etc.). Os Nús e os Mortos do Norman Mailer, já versa sobre o tal soldado raso na II Guerra Mundial (no Pacífico), o pequeno pelotão de meia dúzia de homens comuns.

E hoje em dia, chegámos ao ponto de psicanalizar os estrunfes, considerando-os racistas e marxistas.

4 comentários:

Pós-modernidade da Correia disse...

E depois veio tudo por aí abaixo e a modernidade e a consciência do indivíduo (e abençoada língua portuguesa por não ter uma palavra tão espúria que corresponda com exactidão ao inglês 'self') ou até de 'identidade individual' conheceram o seu apogeu no José Rodrigues dos Santos a dizer, no final do Telejornal, "Em especial para si, uma boa noite".

RBM disse...

Costumava ser muito gozada quando dizia que gostava de literatura russa. Nunca li o Guerra e Paz, mas o Anna Karenina, é dos meus preferidos. Prefiro todavia Dostoiévski, e ainda na evolução do sentido da modernidade, Nabokov. O guerra e paz, quando tiver tempo. Ou coragem para pegar nos volumes :)

Laranja disse...

Quando li este teu post de manhã pensei "deixó chegar ao 2.º volume... eh eh eh!"

Tolan disse...

Pois, eu arrependi-me de o pagar pelos dois comentários acima, não gosto de apagar posts que já tenham sido comentados, por respeito aos comentadores, eu sou uma pessoa assim, respeituosa.