quarta-feira, 25 de agosto de 2010

sei que ela vai aparecer

Então estou neste semáforo e sintonizo uma rádio manhosa que dá uma música reggae de uma banda chamada Cidade Negra, cantada em brasileiro, enquanto conduzo pela Av. De Ceuta, encostado à Maria pia, ao casal ventoso. A letra da música diz é quando você percebe, que o frio é a solidão, que só a presença do amor, pode aquecer seu coração, sei que ela vai aparecer, sei que ela vai aparecer, sei que ela vai apareceeeer. Nos prédios, as bandeiras de Portugal desbotadas, os carros de tuning estacionados, o café corajoso assaltado 4 vezes por mês onde se juntam os gandulos todos e os velhos demasiado velhos para terem medo de qualquer coisa. Há uma escola de artes marciais. Dentro das casas, as televisões azuis ligadas 12 horas por dia, nas novelas, nos programas matinais, nos concursos, nos telejornais, a tábua de engomar na dispensa ao pé da cozinha pequena e atulhada, com infiltrações de humidade. Estou parado no semáforo. Há uma coroa de flores encostada ao separador, provavelmente um atropelamento. O radar dos 50kmh testemunha silenciosamente a campa. Uma miúda gira espera um autocarro. É bonita. Vejo que é dura e confiante, cresceu ali. Outra miúda ficaria em pânico de fazer o caminho do desterro dos prédios até àquela paragem, especialmente à noite. Dois putos passeiam um pitbull. Vê-se que ela faz um esforço para ser feminina mas só no quarto antes de sair à rua. Ali tem um ar um pouco indolente, não parece surpreendida por nada, nem atenta a nada de especial, tem o olhar um pouco vago das pessoas menos inteligentes. O romance, as ideias de paixão, têm de ser alimentadas pela arte para poderem planar acima dos instintos. Ali, com aquela mulher, atinge-se o osso das coisas. O autocarro vai levá-la ao emprego na loja do Colombo. Talvez ainda estude, mas não me parece. Talvez eu pudesse casar com ela e ensinar-lhe coisas. Está a mastigar pastilha elástica e a ouvir música. Sabia que ela ia aparecer e apareceu. O semáforo abre e despeço-me do amor da minha vida. Os tipos das obras da nova etar de Alcântara fumam cigarros antes de enfrentar o cheiro nauseabundo dos esgotos dos ricos. Fecho as janelas.

2 comentários:

Mónica disse...

:) tenho alguma dificuldade em comentar um texto que gosto com um "Lindo" ou algo do género. Assim sendo cá vai algo mais objectivo.
Gostei. Obrigada.

Isabel disse...

Também costumo olhar assim para o que está à minha volta, mas nunca o descreveria desta forma. Por isso agora leio-te desde o início. Para seguir, pois claro!