quinta-feira, 28 de março de 2013

ovelhas

Muito bem, vou ser pai de uma menina. Enquanto não consigo digerir as implicações, vou antes falar aqui numa coisa que li na sala de espera da clínica da ecografia e que não consegui partilhar com a Plaft na altura. Borges, uma pessoa que tem sempre razão, fez um texto muito bom sobre alegorias. Não sei o nome do texto, mas deixei volume II das Obras Completas no carro e não me apetece ir lá abaixo buscar o livro. Pegando no exemplo de Nathaniel Hawthorne, um autor que fazia muitas, muitas alegorias, Borges refere que o Nathaniel pensava numa situação e depois preenchia essa situação com as personagens necessárias. Por vezes prejudicava a qualidade literária dos seus contos ao forçar uma moral (era calvinista). Borges refere-se a notas de Hawthorne em que o mesmo, antes de escrever, resume o conto ou a hipótese de conto numa sinopse e de seguida escreve um possível significado e uma possível interpretação da alegoria, como se criasse e interpretasse ao mesmo tempo, antes de começar a escrever propriamente dito.

Onde discordo de Borges, porém, é na interpretação que faz das notas. Revejo-me em qualquer crítica que se faça a morais, significados e símbolos martelados numa história e expostos de forma demasiado esquemática (um defeito por vezes presente em alguns livros de Saramago), mas acredito que o facto do autor ter notas desse tipo não quer dizer algo necessariamente. Borges, noutro texto, assume-se como não-romancista declarado e diz também que um bom romancista é normalmente alguém que pensa por imagens, de forma instintiva, construindo um universo e personagens próprios, nos quais acredita profundamente, mesmo que à custa de uma lógica ou esquema perfeito (dá o exemplo de episódios implausíveis ou ilógicos da obra de Cervantes ou Shakespeare). 

A criação absolutamente livre esconde por vezes um processo de reflexão invisível, permanente, intelectual e profundo, seja ele anotado nas margens dos manuscritos ou não. O facto de ser invisível na própria obra não significa que o autor que pensa por imagens não tem o mesmo tipo de raciocínio intelectual que um escritor como Borges (ou Calvino ou Sartre, que não são romancistas). Se é verdade que a boa escrita nunca é consciente durante o acto em si (sim, o velho cliché da mão do Lobo Antunes), não se pode sonhar com ovelhas sem nunca ter visto uma, e é impossível um escritor sonhar espontaneamente com uma sucessão de ovelhinhas que resulte numa alegoria ou metáfora profunda com ligação directa a Homero e ao leitor do futuro, sem ter absorvido, profundamente no seu sub-consciente, muitas ovelhinhas de outros autores. É por isso que  na literatura há muito pouco espaço para o génio espontâneo. Mesmo Bukowski, um aparente proletário, leu uma biblioteca municipal inteira antes de fazer dezoito anos, absorvia e reflectia sobre tudo de forma radical e assertiva, não se lhe conhecendo no entanto, reflexões muito mais profundas que coisas como estas:

"Dostoevski was precisely passionate, but when he ended up with Christ in his lap I wrote him off as going the long way around to find what most idiots accepted in the beginning. Not that I didn't find his journey vibrant. For this, I almost forgave him his final Error. Tolstoy, who ended up the same way, was simply dull throughout. Which I can't forgive." #15 from "Ecce Hetero," More Notes of A Dirty Old Man, p. 171.

"One reason I took to writing was because I'd be doing some reading of the great works of the centuries and I thought, 'Good God! This is it? This is what they're settled on? Shakespeare? Tolstoy's War and Peace? This stuff?" (interview with Marc Chenetier, 1975, Sunlight Here I Am, p. 134.)

7 comentários:

Isa disse...

Caguei no Borges, que agora não tenho tempo.
Muitos e muitos parabéns, Tolinhas, gd beijo pra ti e pra Plaft e longa vida à múda.

Mariam disse...

Isso é tudo verdade e extremamente importante mas, o que de facto interessa, é definitivo e inultrapassável é que baby is a girl <3

Sara Maurício disse...

Parabéns pela menina!Beijinhos e Feliz Páscoa

Tiago disse...

Implicações? isto: http://www.youtube.com/watch?v=0b_l0bE_E9s

Aquele abraço e vê se de uma vez por todas respondes às minhas tentativas de combinarmos qq coisa!

Anónimo disse...

Sou pai de 3. Meninas. Do papá. Às vezes lembram-se que também têm mãe. Normalmente para fazer coisas que já sabem que eu não vou querer fazer. Isto deixa a mãe chateada mas é só fazer alguma gestão emocional/sexual da coisa e tá a normalidade é reposta. Gostam de me ver a jogar Battlefield na ps3, gostam quando eu mato bonecos electrónicos com a faca. Riem-se. Gostam de jogar basket comigo. Também gostam de Barbies e essas coisas. Às vezes penteiam-me. É tão divertido que até me esqueço da dor. Uma delas diz que eu sou a pessoa que ela mais gosta do mundo (4 anos). Outra (2 anos) diz que a pessoa que mais gosta no mundo é ela. A mais velha (9 anos) gosta de estar prestes a entrar na adolescência. Eu nem tanto. Gostam de dançar, uma anda no hip hop, outra no ballet e a outra ainda é uma free lancer mas também vai querer andar em alguma coisa, digo eu. Já rosnei a miudos no infantário por causa delas. Uma vez ameacei que arrancava a cabeça a um amigo da mais velha. Assim, preto no branco, e acrescentei que podia ir chamar a mãezinha se quisesse. Sou capaz de passar horas a olhar para elas. Horas. Não que elas deixem, agora que não param quietas mas quando eram bebés eram horas. Horas. Gostava de poder dizer que vou ser um pai daqueles que compreende que elas têm de sair do ninho e que vão ter namorados e essas coisas. Não sou. Mesmo. Aliás, respeito imenso o pai da minha mulher por conseguir ser simpático comigo. Eu na posição dele temo não conseguir. Gosto muito de ser pai de meninas. Antes de ser pai de meninas tinha aquela coisa do herdeiro na cabeça, de ir à bola com o puto, de comprar os bonecos todos do star wars. Erro. AS meninas são do papá. E o papá é das meninas. Parabéns.
Nuno Rechena

Anónimo disse...

Ah, e gosto muito do Borges, já agora.
Nuno Rechena

R. disse...

I told you so.

R.