quarta-feira, 12 de setembro de 2012

maldição do voraz erudito radical

Então não consigo?. Vou tentar.

 As coisas dividem-se em aborrecido / divertido.

Mas comecemos pelo princípio.

Algumas crianças, por via do acaso, normalmente  influências paternas ou inclinação genética, começam a desenvolver a curiosidade. Esse espírito de curiosidade faz com que classifiquem coisas novas, estranhas e provocadoras como divertidas e coisas repetitivas e fáceis ou simplesmente más como aborrecidas.

Começam a desenvolver o espírito crítico para distinguir as duas e os dois campos vão evoluindo. Há obras que nos parecem fenomenais aos 16 anos e aos 25 são lixo, um bocado como os ministros que elegemos, ao fim de uns meses de governo.

Em casos raros, os seres humanos continuam com curiosidade após o período de juventude, mas maior parte das pessoas perde a curiosidade quando começa a ter intercurso sexual. Felizmente, não foi esse o meu caso ou o teu. És claramente, como eu, um virgem tardio, que perdeu muito tempo e muita energia a pensar em merdas em vez de apalpar mamas.

Em qualquer caso, quando somos mais cultos temos de nos esforçar para encontrar o divertido e a quantidade de coisas aborrecidas aumenta exponencialmente, o que também é uma maldição. Um dos sintomas dessa maldição, a que eu chamo "a maldição do voraz erudito radical", é o despontar de uma frieza emocional perante coisas formalmente mais primitivas e imperfeitas, mas belas como uma flor na primavera. Se achaste a cena da flor pindérica, então cuidado, é um sintoma de maldição do voraz erudito radical.

Grande parte da literatura americana pós-Melville, até meados do século XX, que tu desconsideras, tem exactamente as mesmas características que a literatura russa do século XIX que admiras, excepto dar-se o caso da primeira antecipar cronologicamente a segunda e ser evidentemente clássica e canônica, algo que a segunda nunca poderá ser. Seria o mesmo que admitir que pode vir aí uma banda mais importante que os Beatles.

Também partilham a característica de serem  periféricas. Os monumentos egrégios estão em Inglaterra, Itália, França ou Alemanha, as nações dos filósofos, dos poetas, do saber acumulado. Os russos do século XIX e os americanos até meados do século XX têm uma enorme lata. São punks virtuosos que tiveram acesso a guitarras eléctricas sem consciência do solfejo. A arte é visceral e tem uma execução simples, mas primorosa (excepto em Dostoievsky em muitos casos, mas não obstante o resto compensa largamente - cuidado com a maldição do voraz erudito radical). Não exibem a erudição que tinham. Vivem num mundo que está em transformação, rude, grotesco, provinciano, violento, em convulsão social, com distinções radicais de classes, onde as grandes questões ainda se colocam e perante as quais estão isolados enquanto seres pensantes e não amparados por estruturas ancestrais como nos países berços da cultura. Têm de pensar em termos claros e precisos.

Tudo isto contribui para lhes acerbar a solidão e angústia existencial que é impossível de existir num escritor parisiense ou inglês que passou a tarde num bistrot a beber chocolat chaud (não se bebe chocolat chaud no bistrot mas rima) e que obriga, como Céline, a encontrá-la noutras paragens. É isso que me afasta de Proust ou Nabokov, só para citar dois. São gajos que atrofiam com coisas como a grande angústia que é encontrar a metáfora perfeita, o parágrafo mais elegante para descrever um rosto feminino, quando o que eu quero saber é se aquela cabra vai levar o herói ao suicídio, ao duelo ou ao homicídio, à boa maneira russa.

Concedo que nunca li frases tão elegantes, espontâneas e originais que conseguissem provocar imagens mentais tão complexas e ricas como as de Nabokov, mas estão ao serviço de algo que é manifestamente pouco canídeo, demasiado intelectual. Admito que sou indiferente a páginas com descrições de morfologia de borboletas, por exemplo.
 
Tu falas-me Melville e eu contraponho com outro contemporâneo dele, o Mark Twain. A partir daí é fácil perceber o resto, a bifurcação. Melville instiga-me um sentimento de respeito, reverência e indiferença no íntimo, como a que sente José Sócrates por filosofia por exemplo. Tal como ele, eu também me inscrevo no curso de Melville e leio a sua obra para depois não ser desconsiderado pelos vorazes eruditos radicais a quem tento explicar que Bukowski é bom. Mas é-me estéril do ponto de vista de reacções e emoções que me provoca, nomeadamente, criativas. Twain dá-me vontade de correr atrás de coelhos e levantar as saias às raparigas.

A partir desta bifurcação é fácil entender onde vamos parar os dois nos EUA, no século XX e porque motivo eu gosto até do pior (Kerouac, Hemingway...), do melhor (Salinger, Capote...) e do humano imperfeito (Bukowski, Fante...). Cuidado pois, com a maldição do voraz erudito radical, especialmente a sua variante anglófila.

Tenho a perfeita consciência que perdi o foco do texto a meio mas estou um bocado cansado agora, vou jantar. Quero também dar os parabéns aos admiradores de Garcia Marquez, Paul Auster, Philip Roth ou Valter Hugo Mãe que conseguiram chegar ao fim deste texto sem se sentirem sub-liminarmente insultados, como era natural que se sentissem.



5 comentários:

Sans faire de bruit disse...

Post genial. E eu gosto de Garcia Marquez.

MDRoque disse...

Adorei o seu elogio da literatura e também gosto Garcia Marquez

Pedro Góis Nogueira disse...

"atrofiam com coisas como a grande angústia que é encontrar a metáfora perfeita, o parágrafo mais elegante para descrever um rosto feminino, quando o que eu quero saber é se aquela cabra vai levar o herói ao suicídio, ao duelo ou ao homicídio, à boa maneira russa." Thumbs up! Ora aí está. À boa maneira russa :)

Anónimo disse...

Hear, hear!!!

Nuno Rechena

Pedro M disse...

O post é bom sim senhor, só é pena que a minha cultura não me permita compreender 95% do que está escrito. Confesso que tenho um feed programado no Mail (sim, uso mac, mas apenas porque vivo acima das minhas posses e pude largar o linux), mas receio que em breve apague o feed, porque ler posts desta dimensão atira por terra a sensação que tinha de estar acima da média.
Se não acreditam, reparem: a flor é linda mas é um exemplo que de facto acho pindérico, até aqui tudo bem. Também tardiamente apalpei mamas, logo pensei em muitas merdas, mas isso pelos vistos não me favoreceu muito, mesmo que tenha lido Gogol por essa altura. E pronto, ficamos por aqui. É que para mim, Twain é Tom Sawyer, Nabokov é o gajo da miúda que o Jeremy H. andou a comer, não é? Isso eu sei. De Dostoiévski só li uns cadernos dele que foram achados num subterrâneo ou lá o que foi. Até o processo do Franz está ainda em aberto numa repartição pública, pelo menos é a ideia que tenho. Do Nobel de 82, nunca li nada, só do Nobel de 98.

Quanto aos "punks virtuosos que tiveram acesso a guitarras eléctricas sem consciência do solfejo" - e considero esta frase uma pérola, diga-se, - considero, e não me refiro apenas aos escritores em causa, mas à arte de uma forma geral, que a arte 'visceral' é aquela que na sua maioria mais consegue provocar alcançando assim o seu principal objectivo. Sobrepõe-se à técnica e à critica dos intelectuais, que de palas nas frontes e nada produzindo, vão sobrevivendo nos seus despojos, atentos e conhecedores dos meios, mas ignorando o âmago dos fins.

E pronto era isto. Obrigado e com licença.