sexta-feira, 8 de junho de 2012

e agora, um exemplo cultural, o cinema

Façam um esforço, vá lá.

Depois do exemplo abaixo, que tenta expor o absurdo do raciocínio de que receitas que não advenham directamente do orçamento de estado não saem do bolso dos portugueses, pego neste artigo de opinião de Pedro Borges, no DN, intitulado "Verdades e Falsidades sobre o cinema português".

Antes de começar, e porque dizer mal do futebol é fácil tendo em conta o meu target, devo advertir que sou totalmente favorável a cinema financiado directamente pelo estado.

Tenho algumas ideias a esse propósito que não cabem neste post, mas o ponto a reter é que, no leque de gastos extremamente questionáveis por parte do estado português, considero que há um ataque ideológico ao sector da cultura, visto que é um sector normalmente dominado pela esquerda que, com  excepção da Fernanda Câncio, só se pode defender com a natural falta de capacidade argumentativa da esquerda (como vão ver).

 Depois de afirmar isto, vamos então a estes dois parágrafos épicos, em que Pedro Borges tenta separar as verdades das mentiras.

O cinema português é produzido com dinheiros do Estado: FALSO. Durante década e meia, os fundos públicos para o cinema resultaram de uma taxa sobre os bilhetes de cinema. Depois disso, de uma taxa cobrada pelas televisões aos anunciantes (4%), da qual quatro partes revertem para o Instituto de Cinema e uma parte para o (ridículo) orçamento com que trabalha a Cinemateca. Nem um cêntimo do Orçamento do Estado... 

Em Portugal há muitos milhões de euros para a produção de cinema: FALSO. O orçamento anual de apoios à produção não chega a nove milhões de euros: o equivalente a dois filmes médios europeus. Com esse dinheiro, e custos não muito diferentes, cria- -se em Portugal dez vezes mais filmes...

Bom, só coloquei o segundo parágrafo porque é totalmente contraditório com a afirmação do primeiro. O primeiro diz que o cinema não é produzido com dinheiros do estado (usa o termo "públicos" que na opinião do autor significa outra coisa), o segundo diz que há um orçamento de 9 milhões de... enfim, não vamos perder mais tempo com o segundo.

É no primeiro parágrafo que está o sumo. Lá está o que referia no post abaixo a propósito do dinheiro da UEFA, cobrado pela FPF que actua como intermediário do Estado. Na opinião de Pedro Borges (e de muita gente a propósito de muita coisa do género), o facto de se cobrar uma taxa sobre bilhetes e uma taxa aos anunciantes, não é o mesmo que receber dinheiros do estado.

Lá está o mesmo raciocínio da compartimentação de contas, quando no fundo se trata de dinheiro que é "taxado" a pessoas e que tem o mesmo efeito no rendimento delas e das distribuidoras / salas de cinema que tem o IVA. Na prática aquela taxa é uma espécie de agravamento do IVA nos bilhetes de cinema, não há diferença.

11 comentários:

Isa disse...

eu percebi bem? elogiaste a cancio? pqp...

disse...

compreendo o que queres dizer e não quero defender argumentos sectários do establishment do cinema, mas há de facto uma distinção importante entre taxa e imposto. o imposto atinge uma franja inteira da população de forma coerciva, ou seja, pagas e calas-te, e fazem o que querem do teu dinheiro. a taxa supostamente é voluntária, se a pagas é porque adquiriste um produto associado ao destino da taxa. portanto, o imposto é redistribuído de forma abstracta, a taxa não, tem um destino fixo e lógico, associado ao produto que consumiste. se menos pessoas forem ao cinema, ou o anúncio em televisão passar a valer menos, há menos dinheiro para o cinema, mesmo que o orçamento de estado se mantenha. mas isto tu já sabes.

agora, pode-se argumentar que o simples entendimento de que se deve fixar a taxa de cinema em 4% representa a intervenção e a margem de manobra do estado para alterar os orçamentos do ICA, mas o estado aqui intervém como legislador e não como executivo. e como não existe um número máximo de filmes financiados por ano (pelo contrário, deve existir um número mínimo para evitar que o dinheiro vá todo parar ao filme anual do Manuel Oliveira e às "co-produções" Bollywoodescas) para que se possa dizer que este ano foram financiados filmes a mais, ou demasiado caros (porque dinheiro para o cinema nunca sobra, falta), não se pode dizer que para o ano o orçamento terá que ser menor, assim os 4% são uma representação simbólica/negociada do valor do cinema português na televisão. não é propriamente aquilo que o estado está disposto a pagar pelo cinema português, é aquilo que o vendedor (o agente que cobra a taxa) está disposto a perder na sua margem de lucro. já sei, sobem os valores cobrados e quem paga é o consumidor (não o contribuinte), mas é o vendedor que dá a cara na mesma e é ele que pode perder clientes.

não sei se fui claro neste vendaval de parêntesis, é um pouco diferente do caso da FPF, que é indefensável. I'm just saying.

Tolan disse...

Zé, ao pagar um bilhete de cinema para ver um filme já existe essa transferência de dinheiro para o filme em questão pelo que não faz sentido falar numa taxa que é aplicada ao produto de destino. Se a taxa no bilhete é redistribuída por todos os filmes portugueses financiados, é absurdo que uma pessoa, preferindo um determinado filme português, esteja a financiar (ainda que num montante reduzido) outros 30 filmes por intermédio dessa taxa (a taxa não é voluntária, nunca são voluntárias).

o que se quer dizer é "se tu gostas de cinema português e pagas bilhetes, então paga lá uma taxa para o apoiar, quem não vê não tem de pagar " e fazer com que os Pedros Borges desta vida tenham a sensação que não estão a viver de impostos, mas sim de um rendimento semelhante às receitas de bilheteira. É o famoso princípio do utilizador pagador, que tão habilmente permitiu a introdução de impostos disfarçados de taxas em coisas desde propinas a portagens, quando já existem impostos (IVA, IRS, IRC).

se extrapolarmos este princípio, então nem um tostão dos impostos de um determinado indivíduo deveria financiar algo de que ele não necessita ou valoriza. Nota que ao comprar um hamburguer no McDonalds, eu estou a pagar IVA que financia a compra de um submarino alemão, o subsídio à FPF ou os medicamentos de um hospital. Por esta ordem de ideias, eu pagava um hamburguer e haveria uma taxa qualquer especificamente para tratamento de doenças cardiovasculares ou fiscalização da carne.

disse...

não foi isso que eu quis dizer.

quem paga (pagava) a taxa são todas as pessoas que vão ver blockbusters americanos, porque as pessoas que vão ver os filmes portugueses não chegam para pagar o dia de um ferra-o-bico que empurra holofotes. basicamente é o estado a dizer que apoia a cultura (que até ver não consegue autosustentar-se, o que não pode ser razão para o estado a deixar morrer) neste caso através de legislação específica, dizendo que uma determinada indústria (o cinema e a televisão) tem o dever de apoiar o cinema português.

epá, a sério, é um bocado diferente de um imposto. o IVA não está só nos hamburgers, está em todo e qualquer consumo, é impossível fugir-lhe. a taxa de cinema não é bem o caso. mas mais uma vez relembro que não tenho nenhum apreço especial por essa taxa nem sei se é a solução ideal para financiar o cinema, e muito menos acho bem que apareça um feliz contemplado a dizer que foi ele que ganhou aquele dinheiro, quando a indústria que o sustenta não é bem a sua, é praticamente um mecenato forçado.

Tolan disse...

Uma taxa é um imposto (por definição). Quando se está a cobrar esses 4% aos anunciantes, por intermédio das televisões (que actuam como cobradores pelo Estado nesse caso), o que se está a fazer é a agravar os impostos sobre a actividade de comprar e vender espaço publicitário e em última análise isso é pago por todos nós directa ou indirectamente.

o caso do cinema e dessa taxa de 4% tem piada. Os anunciantes hoje em dia gastam infinitamente menos em espaço publicitário na tv do que há 10 anos e valor do espaço caiu a pique, o que significa que o cinema perdeu aí muito dinheiro.

Os anunciantes continuam a gastar só que fazem patrocínios, apostam no on-line, em marketing directo, em point of sale, etc. A própria televisão perdeu uma grande parte da sua importância face à Internet ou consolas etc. o que distorceu claramente o princípio subjacente a essa espécie de compensação dentro do audiovisual (as pessoas viam filmes na televisão em vez de ir ao cinema e suponho que esse raciocínio estúpido esteve na base da opção por essa taxa, como o raciocínio estúpido da taxa sobre dipositivos graváveis para a SPA)

No caso da taxa nos bilhetes o que se está a fazer é um IVA + Taxa, pelo é exactamente o mesmo que um IVA agravado (creio que eles pagam 13pct agora, a taxa intermédia).

Estes esquemas são tão absurdos como determinar que o imposto sobre combustíveis (ou parte dele ou uma taxa extra) vai ser aplicado na manutenção das estradas e em despesas hospitalares de sinistralidade rodoviária.

Estas taxas(como as da SPA sobre os dispositivos graváveis) só existem para, por um lado, tornar complexa e difusa a carga fiscal na economia e assim diminuir o seu impacto político / psicológico e por outro para gerir a pressão de lobbies e a opinião pública. Um caso ridículo é o das taxas na factura da EDP que todas somadas chegam a 53% do montante total que pagamos. E metade desse valor vai para as energias renováveis. Eu não me oponho por princípio a que o estado apoie as energias renováveis (apesar de me opor na prática e por motivos racionais), mas esse aumento da taxa na factura é uma forma de aumentar os impostos sem o custo político negativo que teria um aumento do IRS, IVA ou IRC. E pagamos uns 4,5€ por mês para ter a RTP e RDP, canais que se calhar nem sequer vemos...

Por exemplo, falam daquela taxa sobre fast food para financiar as despesas com doenças cardiovasculares. Onde traças a linha? Onde acaba este princípio?

Isto gera distorções, injustiça fiscal e ineficiências brutais como as expostas acima.

Tolan disse...

a vantagem do dinheiro ser distribuído pelo Orçamento de Estado (e não por taxas e subsídios cruzados) é a de que o Orçamento pode ser gerido e ajustado anualmente, é sujeito a debate no parlamento, é aplicado por um ou mais partidos eleitos, é sujeito a escrutínio público e oficial.

E idealmente, a maior fonte desse dinheiro deveria ser imposto sobre o rendimento (qualquer rendimento).

As taxas actuam como impostos indirectos. Levando este princípio ao extremo como no Brasil, em que existem 40 mil taxas diferentes, resulta no facto de mais de 50% da receita fiscal advir de impostos sobre consumo e pouco mais 20% sobre rendimento e propriedade, quando nos países mais desenvolvidos é exactamente o oposto. Esta realidade faz com que na prática os que têm menos rendimentos paguem proporcionalmente mais impostos que os mais ricos que conseguem poupar e aplicar o dinheiro.

Tolan disse...

só para acrescentar (5 horas depois), o que não falta são exemplos de aplicações muito duvidosas dos dinheiros públicos e que continuam a decorrer e em montantes astronómicos quando comparados com o cinema (só a RTP custa mais de 1 milhão de euros por dia) pelo que creio que há algo de desproporcional e mesmo ideológico no corte ao apoio ao cinema português. O que as pessoas do cinema português devem fazer é mostrar a importância que ele tem ou pode ter, como tem noutros países... Por exemplo, as indústrias criativas são essenciais no século XXI e o cinema é um laboratório, o cinema também é uma forma de promoção dos países e de identidade etc. etc.

Vareta disse...

Hmm... O maior ponto de discórdia é o pareceres acreditar na economia enquanto ciência.

disse...

epá, só agora é que vi que me respondeste, mas os teus comentários são longos e neste momento estou atrasado para ir ali ao coiso. volto depois de jantar para ler isto com calma. tj

Tolan disse...

estão tambem um pouco desconexos, reli agora :\ Não precisas de responder, até concordamos, só que tu não viste os videos do Milton Friedman.

disse...

estava para aqui a responder-te à letra e também me parece melhor concordar contigo, porque assim já posso fechar estes separadores do site das finanças, da wikipedia e do priberam, onde estava a tentar entender alguns conceitos básicos de tributação.

mas só para não pensares que eu estava mesmo aqui à rasca, digo-te que hoje a SIC e a TVI se manifestaram contra a nova Lei do Cinema, que só interessa a esta conversa no sentido em que não há taxa, mas o dinheiro vem do mesmo sítio. quer dizer, a outra taxa mantém-se, mas ainda são obrigados a investir directamente nos filmes portugueses. e com este argumento dúbio te deixo.. (por acaso vi o friedman e o free lunch myth, se calhar aqui no teu blog).