(...)
Comi as papas de aveia, mastigando cuidadosamente para mexer
a cara o menos possível. Quase não posso abrir a boca, mas como não sou do tipo
de pessoa de falar sozinho ou de mexer os lábios enquanto leio, o único problema
é mesmo comer. Para passar tempo, contemplei um pouco o recorte da fotografia da rapariga, muito
séria, a falar para microfones. A sua postura, o olhar como se fosse para uma
grande plateia, tudo aquilo tinha muita convicção, muito
dramatismo. Arrumei a foto debaixo da almofada e fiquei assim na cama, sentado
de pernas cruzadas, encostado à parede. Desde o enxerto de porrada de porrada
do Martim no interrogatório que decidi mimar-me um pouco, ser menos severo
comigo. Assim, em vez de me preocupar com o quadrado de luz da janela que se
arrasta lentamente pelo chão e paredes ou em reservar a cama para dormir, optei
por esquecer tudo isso e aproveitar para descansar no colchão sempre que me
apeteça. Ademais, o calor do sol faz-me latejar a cara dorida. E
ainda por cima, sinto-me deprimido com a minha situação em geral. Um sem fim de
problemas e contrariedades, ao fim e ao cabo. Que porra, que depressão.
Desculpem. Começo a ter saudades dos tempos em que não estava numa cela. O meu
escritório não era nada mau, comparado com certos aspectos da minha situação
actual. O que um bom enxerto não faz a uma pessoa. E ainda dizem que não se
deve bater nas crianças ou nos cães... Tudo isto relativiza um pouco os
problemas, pelo menos podemos retirar lições da desgraça. Lembro-me de uma
manhã em que o meu computador crashou umas três ou quatro vezes e, enquanto
esperava pelo restart e ouvia o
ruminar da Alexandra a propósito do sistema operativo da Apple que era
infinitamente superior ao Windows e que o Observatório devia dar McBooks a
todos, tive um pequeno acesso de fúria. Não, não atirei mesas pelo ar. Primeiro,
nem se manifestou no exterior do corpo, ficou cá dentro, a borbulhar. Mas criou
tanta pressão que às tantas tive de me mexer e bati com o rato do computador na
mesa, algumas vezes, mas com pouca força para não o partir. E tive cuidado de o
fazer em cima do tapete fofinho, um brinde da TMN.
Serei uma pessoa intrinsecamente violenta? Não foi a
primeira vez que descarreguei num rato, mas dessa vez tive mais cuidado que da
primeira. Da primeira vez parti o rato todo e tive a Sílvia do economato e o
departamento de informática à perna durante semanas, à procura de uma
justificação. Não lhes cabia na cabeça que eu tivesse partido material
informático, assim de propósito, era pior do que o ter roubado como, de resto,
todos faziam. Deram-me um velho rato de mil novecentos e noventa e três, uma
relíquia de museu. Tinha sarro fossilizado e foi preciso remover a bolinha do
rato e limpá-lo com um xis acto que também tive de pedir à Sílvia do Economato.
Mas era um bom rato, sólido, fiável, podia bater com ele na mesa, não era como
os modernos ratos ópticos que inventaram depois e que são demasiado leves e
frágeis. Devo mesmo ser um pouco nervoso, agora que penso nisso, batia com o
rato tanta vez no tapete… O escritório estava sempre gelado pelo ar
condicionado e café no copinho de plástico arrefecia em dois tempos. Era
preciso bebê-lo depressa ou já não valia a pena e eu batia com o rato,
frustrado de ter de ir buscar outro e fazer mais um risquinho na folha de
contabilização dos cafés que tinham posto na copa para evitar abusos, quando
todos sabíamos que o responsável era o segurança que, à noite, consumia umas
dez cápsulas, para além de se masturbar no WC das mulheres. A minha colega
Sara, a que tinha o chefe apaixonado por ela, atravessava uma menopausa
fulgurante e era acometida de calores que a faziam impor um clima siberiano no escritório. Se alguém se atrevesse a desligá-lo ou subir a temperatura numa das
suas frequentes idas ao WC, era pessoa para gritar ‘foda-se, quem é que mexeu
no ar!?’ com tanta raiva e mágoa à mistura que todo o escritório ficava em
silêncio e raramente o responsável se acusava. Em silêncio e consternação,
víamos a Sara regular de novo o ar condicionado nos 10º polar ártico, turbo fan e sweep mode. Os que estavam na zona de influência daquele ar
condicionado, sofriam. A Rita, uma das três administrativas do piso, ajeitava a
manta nos ombros, a Sílvia do economato espirrava e assoava-se e o
Manuel... o Manuel via-se que queria
protestar mas não o fazia, só demonstrava que queria protestar, mas de maneira
a que a Sara não percebesse porque os dois davam-se muito mal e ele tinha medo
dela. Aliás, ninguém se dava bem com eles, excepto o chefe que estava apaixonado
pela Sara. E simpatizaram com o Manuel na fase da ginástica. Mas depois ele foi
o primeiro a fartar-se dos exercícios e desmotivou toda gente, então toda gente
lhe reservava ressentimento por ter sido o primeiro a desistir.
É complexo e delicado, um ecossistema de escritório. As
saudades de um bom café. De um bom rato sobre um tapete confortável para se
poder bater nele quanto as janelas do browser encravam e o computador crasha,
de ler os jornais desportivos do dia na Internet… Agora só tenho uma rapariga
numa fotografia e um texto sobre antioxidantes no verso.
Então, ouvi psst, psst da janela da prisão. Ainda não tinham
orientado a câmara de vigilância para a janela.
─ Psst! Chega aqui ó!
Levantei-me e aproximei-me, arrastando o pequeno cobertor
puído. A luz da janela ofuscava-me e a contra-luz vi a silhueta de duas
pequenas orelhas a assomar de uma cabeça felpuda. Os meus olhos adaptaram-se à
claridade. Reconheci o Guaxinim Neurótico. Estava agarrado às grades com as
pequenas patas cheias de pelo cinzento e branco todo hirsuto e enfiava o
focinho para conseguir espreitar melhor para dentro da cela.
(...)
8 comentários:
é um excerto do teu livro?
em pulgas pá!!
Oh Yes! Love it!
Ehhh...
R.
a pergunta que se impõe:
o colchão está na cama ou no chão?
aahahaah
Oh rato de escritório, para quando , ã, ã, ã ?????
isto aqui são esboços do 2º romance que O Autor está a fazer. Pediu-me para colocar aqui antes que os apague, a ver mostra serviço e sossega as pessoas.
Lá está, marketing!!! e do bom.
Enviar um comentário