Café típico da baixa, extenso balcão de alumínio com bolos tristes sob
luzes néon, um patchwork colorido de chocolates, chupa-chupas e pastilhas, bebidas espirituosas em prateleiras de vidro, o Correio da Manhã e o Record que às 9:00 já têm as páginas amarfanhadas pelos taxistas e comerciantes, uma televisão na TVI com o Goucha a saracotear-se de blazer lilás e cartões das deixas na mão e a outra, a que tem a voz mais estridente que já me foi dada a ouvir, a debitar observações jocosas em tom de revista à portuguesa, deixando a plateia de donas de casa a rir e os empregados do café hipnotizados. Tento, sem grande sucesso, pedir um café no fim, é sempre a mesma coisa... Um café, por favor. A minha voz muito grave não deve ser perceptível no caos acústico da reverberação ampliada por tanta superfície lisa e fria, faltou-me falar no chão de azulejo, enfim. Procuro o olhar dos dois empregados, um distrai-se a negociar com um distribuidor, o outro divide a atenção entre a tv ou o balcão que precisa de ser polido pelo pano, ou uma moeda de 10 cêntimos que caiu para o meio dos compais do expositor frigorífico. Olhe, era um café, se faz favor. Nada, sentir-me-ia invisível não fosse dar-se o caso de ter chamado a atenção de todos os três ou quatro clientes habituais. Um deles até se volta para trás, sentado que está ao balcão, vira-se para o empregado e hesita em ajudar-me, mas volta a mergulhar nas importantes notícias do Metro. Então solto o meu "OLHE, UM CAFÉ SE FAZ FAVOR!" no tom de voz de Manuel Alegre a declamar poesia revolucionário num comício de jovens raparigas de esquerda. O café sobressalta todo e o empregado até faz um esgar de elá, também não é preciso. Como uma criança que estava a provocar o pai e lhe esgotou a paciência e fica sentida com aquela brusca mudança de tom, dirige-se para a máquina. Pergunta-me 'é cheio, não é?' e digo que sim, mas só porque não o quero curto e nos primeiros meses ele trazia-me o café curto convencido que estava a satisfazer um capricho de um cliente habitual. Só percebi que era propositado e não sovinice quando, certa vez, encontrando-se a limpar uma mesa longe da máquina do café, completou a minha declamação "OLHE, ERA UM CAFÉZINHO!" com a instrução "e é curto para o senhor!" para o colega que se encontrava de serviço perto da máquina. Hoje desisti de pedir de café ali, há outro perto e cujo café não é mau. Assim que acabei a torrada, levantei-me e fui pagar e eles perguntam-me os dois muito tristes e muito espantados: "então hoje não bebe cafezinho?" e eu respondi "Não." Um não seco e curto. E foi assim. Paguei com uma nota de 5 euros nova e tudo, para verem que não foi por falta de trocos. Ia tomar o pequeno almoço no tasco com três metros quadrados, mas hesitei antes de entrar.
Um dos empregados, um jovem suburbano tatuado, do sporting, imitava uma
galinha desajeitada por entre os carros cá fora, para dar as boas
vindas a um chofer de presidente que eu sei que é do benfica porque se envolve em discussões inúteis com aqueles empregados, todos os dias. Pelos
vistos terá cantado de galo. Lá dentro a discussão ia animada.
3 comentários:
Há praí um trocadilho que diz "Café" é que nos salva... mas eu não vou fazer essa maldade contigo... agora na Minha Guerra (ehehehe) há silêncios que dizem mais do que mil palavras....
eu utilizo técnicas mais subtis. Levanto-me e pergunto com ar muito respeitador:
onde é que se entregam os requerimentos prás bicas?
Lemos - " Hoje desisti de pedir de café [...] " Devíamos ler - "Hoje desisti de pedir café..."
Faço trabalhos de revisão. Orçamentos grátis e vou a casa.
Obrigado.
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