Sou menino e por isso gosto muito de guerra e este livro é muito bom. Só tenho pena que tenha sido escrito em 1993 e não em 2013, terminando na Guerra do Golfo e na conclusão de que essa guerra foi a primeira guerra "justa", no sentido de ter sido aprovada pelas Nações Unidas, de responder a uma clara violação da soberania de um país invadido (Kuwait), tendo como objectivo a sua libertação, tendo recebido o aval da Rússia que até então estava num bloco oposto aos EUA e de que a tecnologia e os métodos foram direccionados para a minimização de mortos civis, o que foi conseguido com maior ou menor eficácia (isto contrapondo aos carpet bombings da II Guerra Mundial que arrasavam cidades por exemplo). John Keegan quer estabelecer a teoria de que há como que uma evolução, uma tendência, para o fim da guerra, pelo menos no contexto de mudança na cultura ocidental. Contudo, por ter sido escrito em 1993 e não em 2013, não teve ao seu dispor o retrocesso civilizacional que constituiu a posterior invasão do Iraque no contexto do terrorismo global, considerada ilegal do ponto de vista do direito internacional e baseada em provas forjadas, o que prejudica em parte a sua teoria, mas talvez apenas a atrase, se recordarmos que Obama foi eleito com base na declaração de princípios opostos ao do seu antecessor, tendo até como argumento de campanha a retirada do Iraque.
Keegan coloca a tónica na questão "cultural". Em pouco tempo ocorreu uma transformação enorme na forma como os povos encaram a guerra e basta comparação o mundo antes da II Guerra Mundial e o próprio contexto da Guerra Fria, para percebermos que de facto ocorreu uma mudança. A maior surpresa foi perceber que nos tempos da antiguidade a guerra era muito mais leve, apesar da crueldade que lhe associamos, talvez porque para nós, espadas e lanças são mais "violentas", uma vez que envolvem combate corpo a corpo, comparado com o carregar de um botão de míssil tomahawk. Não havia o conceito de guerra total e as facções em conflito evitavam perdas exageradas de parte a parte. Mesmo nas tribos mais primitivas as guerras até podiam ser relativamente simbólicas e resumir-se a um combate num sítio previamente combinado e com regras muito rígidas. Resolvido o conflito, as partes iniciavam um novo período de paz até que um acumular de tensões exigisse novo ritual catártico de combate. Paradoxalmente, a ideia de "ritualizar" o combate, e que parece tão primitiva, acaba por ter um resultado mais racional do que a "racionalidade" clausewitziana aplicada ao combate, uma vez que as perdas de parte a parte são limitadas. O Japão proibiu as armas de fogo e considerava-as imorais, vendo na pólvora um princípio químico e artificial, enquanto que as espadas feitas de aço e o seu manejo eram uma extensão da natureza e por isso moralmente superiores. Se parece irracional a opção por atrasar o desenvolvimento de tecnologia de guerra, quando se podia optar pela revolução da pólvora e subjugar povos vizinhos ou pelo menos defender-se deles, o resultado prático é que só uma pequena classe de elite (os samurais) tinha acesso quer às espadas caras, quer à habilidade para as manejar, limitando assim por largos séculos as mortes decorrentes de conflitos.
A guerra corpo a corpo existiu com as falanges da grécia antiga e esparta e foi inovadora, sendo também utilizada de forma cabal pelos romanos, mas exceptuando esses combatentes temíveis e implacáveis, os conflitos antigos eram frequentemente de desgaste, ataque e fuga. Assim que um dos lados estava a perder ou era psicologicamente afectado perante um avanço mais afoito do outro, algo particularmente relevante nas guerras de cavalaria, um dos lados recuava e não havia desonra da retirada. As falanges gregas inovaram pela aniquilação do adversário, tendo mesmo tropas especializadas em perseguir e chacinar combatentes em fuga, mas estávamos bem longe da ideia de "destruir" um inimigo, até porque seria logisticamente complicado e exigiria um investimento ainda maior em capacidade destrutiva, algo que era visto como irracional. É curioso que só muito recentemente na história da humanidade tenha sido
o próprio combate a matar mais soldados do que a doença e privações a
que eram submetidos quando em campanhas, devido a estas limitações
logísticas. É curioso que só muito recentemente tenha sido
o próprio combate a matar mais soldados do que a doença e privações a
que os soldados eram submetidos quando em campanhas de guerra.
Apesar do exército romano democratizar o acesso à carreira militar, não existia a ideia de recrutamento maciço, ideia que só foi introduzida com Napoleão e que dava o direito (ou obrigação) de todo o homem se alistar no exército e combater, um prenúncio da hecatombe da primeira guerra mundial em que morreram 9 milhões de jovens patrioticamente inflamados. A civilização ocidental era (é) efectivamente a mais bárbara de todas, no sentido de ter sido ela a potenciar inovações tecnológicas e teóricas (Clausewitz) para permitir e justificar uma guerra total que fosse decisiva e aniquiladora. Antes, não existia a ideia de um conflito se resolver de forma total em batalhas decisivas em que o adversário era eliminado. Como os combates eram limitados entre uma pequena fracção das populações, era impossível duas sociedades destruírem-se mutuamente de forma tão arrasadora como nos conflitos modernos. Claro que é preciso ter em conta as questões tecnológicas e logísticas. Se morreram 9 milhões na I guerra, também se deveu em grande parte à utilização dos caminhos de ferro, pois antes disso, mesmo que quisessem, era impossível mobilizar tanta gente para uma frente de batalha. Contudo, antes de Napoleão, a ideia fundamental é a da compartimentação da sociedade entre guerreiros e civis normais, sendo que quem fazia a guerra também não tinha interesse em estender o privilégio de usar armas (ou a chatice de morrer em combate) aos desgraçados que só queriam cultivar as terras e ordenhar vacas. Isto resultava numa minimização de mortes em caso de guerras, pois a proporção de militarizados numa sociedade era mínima.
A filosofia e cultura Chinesa era (e é) fortemente avessa à resolução dos conflitos pela violência, favorecendo conflitos que não se resolvem em batalhas totais e decisivas (basta pensar no Vietname para ver a aplicação prática destes princípios e na posterior replicação destas técnicas em toda a áfrica colonizada) privilegiando ataques, recuos e avanços, manobras esquivas, guerra psicológica e controlo da situação até à desistência e subjugação do adversário por desgaste, em vez de grandes batalhas decisivas. Mesmo hoje em dia, o próprio terrorismo islâmico, com o expoente máximo do 11 de Setembro, apesar de chocante, desumano e bárbaro, não tem qualquer efeito definitivo, isto é, não tem qualquer efeito no adversário que não o de desgaste. Talvez por isso nos pareça a nós, ocidentais, mais absurdo e abjecto, uma vez que não tem qualquer efeito prático concreto na destruição de um inimigo, enquanto que os "danos colaterais" das "bombas inteligentes" e que podem multiplicar por 10 ou 100 ou 1000 a contabilidade das vítimas do terrorismo, como estão ao serviço de uma intenção concreta e racional (eliminar talibans, depor um líder, destruir terroristas, libertar um país etc.) e que por isso são mais compreensíveis ou justificáveis.
Keegan diz, e a meu ver bem, que a esmagadora maioria das pessoas não é violenta. Apesar de todos termos potencial para a violência, a verdade é que na maior parte das culturas privilegiamos valores como o entendimento, a ajuda mútua, o respeito, uma vez que sem esses valores mergulhamos num caos que é prejudicial a todos. Faz assim a defesa da necessidade dos exércitos e da força, pois concentra de forma disciplinada e organizada a capacidade de combate num grupo restrito de pessoas treinadas para tal. As próprias forças da lei e ordem são disto reflexo, sendo efectivamente mais bárbara a ideia de que seríamos nós a ter de pegar em armas para nos defendermos do que confiar em que lide com a violência por nós. A própria ideia de dissuasão exerce sem dúvida um efeito preventivo da violência. Cada potencial criminoso não enfrenta um cidadão isolado, mas sim todo um "exército" preparado para lidar com ele.
Termino com a nota de que nos EUA foi chumbada a lei de restrição de armas que Obama tentou passar. O princípio subjacente a essa rejeição não é fundamentalmente o da auto-defesa contra eventuais criminosos e substituição do papel que competiria ao estado e às forças de segurança oficiais. O princípio é o da desconfiança face ao próprio Estado, às suas forças de segurança e exército. A ideia de que o americano tem direito a defender-se de forma violenta de um Estado que lhe seja hostil e opressor, escrita na constituição é, sob qualquer prisma, a evidência de uma sociedade ainda culturalmente atrasada e que nem sequer sarou as feridas de uma guerra civil. Podia fazer sentido na génese daquele país, em que as distancias geográficas, dificuldades logísticas e de comunicação, isolavam populações de um poder central e da eficácia das forças da lei e ordem. Até admito que alguns casos assim é e acho legítimo que um agricultor isolado geograficamente tenha ao seu dispor um mecanismo de dissuasão. Mas sob qualquer prisma que se queira ver isto, não vejo hipóteses de ter outra conclusão que não a do atraso. O prisma mais imediato e natural é considerar os defensores das armas nos EUA como atrasados mentais e somar a isto ainda a importância do mero lobby económico dos fabricantes de armas. Outro prisma é considerar, como fazem tantos liberais de pacotilha portugueses que se babam com estas coisas, que o facto da lei ter sido chumbada é um sinal de saúde da democracia americana. Mas isto é esquecer que esse chumbo ocorre porque para muitos americanos a democracia representativa não funciona e não só não funciona como pode preparar um ataque violento contra o qual se devem preparar com instrumentos de violência.
10 comentários:
considerada ilegal do ponto de vista do direito internacional e baseada em provas forjadas Certo. Então o Massacre de Halabja não aconteceu. Não são armas. As armas foram vendidas pelos Franceses, Ingleses inclusive Americanos.
A civilização ocidental era (é) efectivamente a mais bárbara de todas, no sentido de ter sido ela a potenciar inovações tecnológicas Concordo até certo ponto. No entanto não creio ser uma verdade absoluta. Podes dizer que o Ocidente concentrou (e massificou) o avanço no campo da inovação das armas. Dizer que foi a mais bárbara é fazer bitola do incomparável. Porque existiram outras civilizações (neste caso os fenícios com as galés posteriormente copiadas pelos gregos e pelos romanos) a gerar inovação.
O prisma mais imediato e natural é considerar os defensores das armas nos EUA como atrasados mentais e somar a isto ainda a importância do mero lobby económico dos fabricantes de armas. Não percebo se isso é uma acusação. Ou se é um reparo. Não vejo o porquê de não existir lobby, seja nas armas, na comida biologicamente modificada ou nos produtos derivativos dos CDO's. Lá ao contrário de cá não são hipócritas. Fazem tudo a limpo. Também não percebo o porquê de ser uma sociedade "atrasada". Lá está. Qual é a bitola?! Ter um Estado centralizado? Ter uma regulação apertada na compra/venda de armas?
R.
O texto é muito bom, aprende-se e aprecio todos os pontos de vista. Faço apenas um reparo, eu que sou contra a 2ª emenda mas não sou um feroz opositor da 2ª emenda. Não é assim tão complicado a partir deste pressuposto: os Estados Unidos nunca tiveram um regime totalitário fascista ou comunista de qualquer espécie. São a democracia mais antiga do mundo. Porquê? A meu ver umas das fortes razões para isso é precisamente a 2º emenda. Não é a democracia ser mais saudável e musculada, que não é, e democracias mais saudáveis e musculadas, sabemos nós muito bem, caíram pelo uso da força. A 2ª emenda foi escrita precisamente para que a tirania dos ingleses que deu azo à declaração de independência não se repetisse. Dado o reparo um pouco à advogado do diabo, claro que sou contra: não faz sentido nos dias de hoje, nem sequer como defesa do Estado maldoso que com os drones limpa qualquer um ao comando de um computador, depois porque é extremamente perigoso, não só pelas armas de hoje como por ir parar a transtornados e doidos varridos, e porque estimula a barbarie, o crime, a violência, a insegurança, o medo, acabam por morrer muito mais pessoas e é de todas as formas incivilizado e atrasado, coisas que ficaram de há muito tempo atrás. Mas, ainda assim, neste ponto as coisas não são tão a preto e branco como à primeira vista se possa pensar. Do mais, remete para outra discussão que tem que ver com legalização versus ilegalização que é uma ainda mais longa e complicada discussão.
Boas,
"Keegan diz, e a meu ver bem, que a esmagadora maioria das pessoas não é violenta."
É verdade, mas infelizmente, a realidade às vezes é mais complexa. A maioria dos alemães não seriam violentos, mas os psicopatas que os comandaram sim e conseguiram transformá-los. Os espanhóis não eram violentos até a Guerra Civil provar o contrário. Como o Kubrick mostrou na Laranja Mecânica, pode condicionar-se alguém violento para se tornar "pacífico", mas o inverso também é verdade.
Uma discussão interessante :)
Inocentinho, o Keegan diz que em todos há o potencial de violência, aliás, deixei isso no texto, e que por isso é um avanço conseguir restringir o uso de meios de violência a uma classe disciplina (importante este ponto) e reduzida. O ponto é que o excesso foi precisamente atingido no século XX em que se conseguiu massificar a guerra a todos os níveis e nunca existiram antes exércitos constituídos por uma percentagem tão elevada da população.
Pedro, no contexto histórico a 2ª emenda fazia sentido, mas isso era em 1798. O facto de continuar a fazer sentido e a ser invocada em 2013 é que me parece um sinal que de que ainda não evoluíram completamente desde 1798. Não sei se foi essa emenda que impediu um estado totalitário, comunista ou fascista e duvido muito, até porque (e aqui admito um preconceito) acho que essa emenda até diz mais aos americanos mais atrasados. De facto, nos estados culturalmente mais evoluídos, como Nova Iorque ou Conneticut (por oposição a Texas e afins) até passaram legislação de restrição às armas.
R., essa da defesa do lobby às claras que defende o comércio livre de armas, enfim... preocupa-os o lucro, apoiam-se na constituição e não são hipócritas, ok, leva a bicicleta.
Apoiar-se na Constituição é ilegítimo?
Olha que coisa. Mas alguém não sabe que o que os preocupa são os lucros?! E que há interesses?
Se há base social para isso, não compreendo o porquê da questão. E nem sou a favor. Sou bem pela regulamentação. Só não entendo as virgens ofendidas. Aliás, o ódio indígena que o Europeu tem pelo Americano. Se calhar é melhor ter listas fechadas. Sem lobby's. Tudo na melhor das confianças. Exato. "O amigo não engana".
R.
Acho interessante que abras com "Sou menino e por isso gosto muito de guerra ...". Varias vezes me pergunto o que seria da humanidade se ah frente dos seus destinos houvesse mais estrogenio.
Juro pela luz dos TEUS olhos que não percebi nem um pintelho do que é poderias querer ter dito com este texto...
«O princípio é o da desconfiança face ao próprio Estado, às suas forças de segurança e exército. A ideia de que o americano tem direito a defender-se de forma violenta de um Estado que lhe seja hostil e opressor, escrita na constituição é, sob qualquer prisma, a evidência de uma sociedade ainda culturalmente atrasada e que nem sequer sarou as feridas de uma guerra civil. »
este fim de semana (ainda nem tinha lido o teu texto), falei sobre isto com alguém. discussão longa. é-me sempre difícil tomar partidos sem ter conhecimento de causa, apenas com base na teoria e a quilómetros de distância. e neste momento já não concordo com a tua frase. não sei qual é a solução, mas o problema merece atenção.
bom ter-te de volta.
Democracia, os USA? Povo racista, prepotente que tem a mania que é melhor que todos, estilo novo riquismo, com uma inveja cultural enorme da europa, que tem levado no "lombo" ultimamente por não saber estar quietinho no seu canto. E a pena de morte é democracia? e a questão das armas é tudo dinheiro pois em terras do tio Sam, tudo gira em volta do dinheiro.
O que sempre achei fascinante é a crença completamente delirante que o direito de possuir armas e formar a milicia poderá fazer frente a um exercito federal tirânico. As instituições de países e grandes organizações devem ser fiscalizadas com afinco e cuidado precisamente porque detêm um poder de fogo oponível apenas por outra potência. Aqui não haveria guerrilha assimétrica, pelo menos não na versão mirabolante que nos é apresentada no discurso dos defensores do direito irrestringível de possuir uma arma.
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