Encomendei o livro na Bertrand do Chiado, a livraria mais
antiga de Portugal. O gerente da livraria explicou-me que esse livro esteve anos
numa prateleira até ser devolvido meses antes. Tive de o encomendar, portanto.
E quando chegou, fui avisado pelo prático correio electrónico. Um dia, ao sair
do metro, fui lá comprá-lo e até me fizeram um desconto de 20%. Levei mais
livros, nomeadamente, uma nova edição do À Espera no Centeio, pela Quetzal, um
livro que nunca é demais comprar e acumular, pois poderá valorizar. Não posso
deixar, por isso, de recomendar a Bertrand do Chiado.
Bertrand do Chiado, onde os livros estão mais bem escritos que noutro lado!
Bertrand do Chiado, onde os livros estão mais bem escritos que noutro lado!
Vamos então agora ao ensaio. O livro é pequenino e tem uma letra 20% maior que o normal, o que
explica o desconto de 20% que me fizeram. Quanto ao conteúdo: o tempo tem um
curso irreversível e os progenitores morrem. Esta é, realmente, uma conclusão que se retira
da leitura do Caminho de San Giovanni e que pode surpreender o leitor mais
incauto. Também há muitas vírgulas e travessões na mesma frase e parêntesis que
nunca mais acabam (o parêntesis quando é aberto causa no leitor uma ansiedade
pelo respectivo parêntese fechado para
poder voltar ao texto principal digamos assim e ele até acelera a leitura para
não perder o fio à meada e quando este parêntesis se estica, estica, estica, às
vezes mesmo com pontos de final lá dentro, dá cabo dos nervos. Seria certamente
dispensável o uso de parêntesis tão extensos. No entanto, apercebi-me que com
esta técnica posso finalmente escrever um bestseller de mistério, basta-me
abrir parêntesis logo na primeira frase do romance e fechá-lo pouco antes do
fim, para manter o leitor sempre em suspense e acelerada leitura, pois ele será
certamente incapaz de abandonar o livro a meio de um parêntesis) e às vezes estes
parêntesis duram duas páginas, o que me parece manifestamente longo. Daqui se
pode perceber que o Italo Calvino se dá mal com a sequenciação das ideias pela
escrita e, como tal, com a própria linearidade do tempo.
Mas voltando ao tema principal (estou a alongar-me de
propósito no post porque sei que o senhor professor alf dá sempre um valor a
mais de bonus por composições de maior dimensão e os parêntesis até dão imenso
jeito para isso porque podemos introduzir neles um assunto que não tem nada a
ver com o texto como os critérios de avaliação do mesmo) há de facto pontos em
comum entre o pai de Italo Calvino e o meu pai. A mãe dele não tem nada a ver,
pelo menos, por enquanto ainda não vi a casa decorada com peluches de cães.
O problema é a escrita do Italo Calvino, uma escrita demasiado
fria, intelectual, madura e distanciada. É de tal forma adulta, dissecadora, escalpelizadora e auto-analítica, digamos
assim, que não me suscitou qualquer recordação emotiva ou sentimento capaz de
me arrancar a tal reflexão suprema sobre a morte de um dos meus progenitores,
nem mesmo quando do ponto de vista descritivo e circunstancial, parece haver
uma sobreposição entre o que era o pai do Italo Calvino e o que o meu era,
respectivamente, para cada um de nós.
O texto do palerma do Peixoto, sobre a cadela dele, por
exemplo, conseguiu fazer-me isso, porque reconheci no seu processo de
mudança - os cães passam de seres
utilitários a membros da família - o processo de mudança do meu pai: a única vez
que o vi chorar um pouco, foi quando lhe morreu uma cadela com quem caçou
durante mais de uma década. Naquelas lágrimas do homem duro que lhe cavou a
cova e a depositou enroladinha no cobertor preferido, junto com o seu chinelo
roído, vi a fragilidade dele, a morte dele, a minha, a de todas as coisas, no
fundo, a irreversibilidade do tempo e a perda, simbolizada no montinho de terra
fresca a destoar do resto da horta. E tudo isto enquanto comia um rissol de camarão e bebia um sumol.
O Italo Calvino é uma pessoa espectacular, mas aborrece-me,
no sentido de entediar, que a figura do pai seja tratada do mesmo modo com que
trata o seu fascínio pelo cinema, embrulhado em recordações homogeneizadas por uma enumeração exaustiva e
tépida. Não peço a todos os filhos que amem ou odeiem os pais ou ambos, mas se
vão escrever sobre isso, então por favor que tenham pelo menos aquele episódio
em que o pai lhes pregou um estalo ou lhe disse que não valiam nada ou o outro
dia em que, do nada, o pai lhes disse que tinha muito orgulho no filho e o filho ficou com um nó na garganta. No fundo, o epicentro do Caminho de São Giovanni é o próprio Italo
Calvino e em que medida aquele caminho o formou a ele e em que medida o pai ou
a mãe ou a merda do cinema o construíram como ele é. E considero essa postura desinteressante
no caso da pessoa construída me ser desinteressante, como é o caso do Italo
Calvino.
Passa-se o oposto no caso do Bukowski, uma pessoa que eu
considero muito interessante. No Ham On Rye, o pai é o carrasco e artífice que
o molda à porrada. Diz-me substancialmente mais - mesmo que o pai nunca me
tenha tocado com um só dedo - do que um pai que se limita a acordar os filhos muito
cedo para ir, cada um à vez, acartar uma cesta de legumes pelo caminho de São
Giovanni
Termino com a sugestão do livro A Confraria do Vinho,
do John Fante, um livro substancialmente menos ambicioso do ponto de vista
coiso, e até algo imperfeito do ponto de vista assim e assado, mas que se aproxima muito mais do que deve ser um tratado sobre o progenitor, a perda e a irreversibilidade do
tempo. Fica aqui a minha recomendação.
16 comentários:
meudeus Tolan
eu quando tiver um filho, se ele quiser fazer crítica literária vou-lhe dizer, está bem, mas por favor, faz isto
http://tolanbaranduna.blogspot.pt/2013/02/trabalho-de-casa.html
e nunca isto
http://apipocamaisdoce.clix.pt/2013/02/por-leitura-em-dia-1entao-e-o-anna.html
Ahahah, muito bom o slogan, era de aproveitar :D
Até porque é verdade.
:)
O ensaio nao esta mau... so precisava de ser 10 vezes mais longo, conter 5 vezes e 1/2 mais adjectivos e adverbios de modo, 547 referencias a quimicos/filosofos/escritores russos/Walter Benjamin, uma quantidade insana de alfinetadas ao JLP e 2 ou 3 "caralhos" e "foda-se".
Se reparares bem, acabo de dar-te a receita de um antidoto infalivel contra a mordedura venenosa de um "harem de comentadoras". Nao tens de que.
Não li o post todo. Mas trabalhei na Bertrand do Chiado. No armazém :)
E acabei de ler "Os Ratoneiros" do Faulkner. O que achaste Tolan?
O Italo Calvino nunca o li. Sabes que é praticamente impossível ser-se escritor a sério? Deve ser uma vida muito deprimente e angustiante. Estou lembrado do que dizia o outro tipo, aquele o coiso o... Thomas Bernhard. Interessava-lhe o dinheiro que depois gastava em jantar... imaginas as dificuldades e as crises artísticas? Caramba. E o sexo? E o puto? E a mulher? E os temperamentos dos vizinhos? E o trabalho? E fazer o jantar? E arrumar a roupa ou lavar o chão? E ver um filmeco ou praticar desporto? E socializar? Não dá. Só me ocorre uma coisa. Os escritores são em larga maioria uns coquetes/burgueses que praticam pouco sexo e não se preocupam com as vicissitudes do dia-a-dia. Quando não o são, saem como o Luíz Pacheco. Sinceros. Há a 3ª via. Os Luís Peixoto. Que copiam coisas.
R.
R., acho que isso é um cliché do caraças, um gajo é o que é. Escolher ter a tal vida decadente e esperar daí ser um grande artista... Ou se é ou não se é. A loucura não se finge, nem o talento. A melhor comparação comigo é um psicopata e digo-te isso com toda a frieza, porque vejo o Dexter e para ele matar gajos é o mesmo que para mim estar sossegado umas horas por dia em frente a um computador a escrever. Um psicopata pode ter mulher e filhos e emprego e bmw e viver uma vida normal e um dia descobrem-se vítimas embalsamadas em formol na cave e os vizinhos e colegas dizem "ele parecia tão normal! não parecia nada um escritor! era simpático e tudo!"
Um dia a Plaft vai-te ao sotão e descobre um Guerra e Paz...
A mim aconteceu-me descobrirem uma seringa. Mas sempre me disseram que tinha aspeto disso. Ou daquelas vez que a minha avó me viu apertar a mão a um preto. Ehhh caraças! Qual Dexter.
Sobre essa frieza não sei se é 100% correto. Eu convivi muito com "futuros" escritores. A impressão que tenho é que são todos génios. Até certo ponto. Uns mais que outros. Mas todos têm vicissitudes e particularidades que um tipo não ligado à escrita ou à Arte não tem. Há que saber lidar com eles. Nalguns casos agudiza. Depende do quão genial se é. Mas também depende do quanto o artista consegue exprimir. Sabes que um "inteletual" género Vasco Pulido Valente passa 80% do tempo a ler. Literalmente. E estamos a falar de um Português. Que não lê em Inglês nem em Francês. Imagina aqueles tipos de topo Anglo-Saxónicos. Que dão palestras. Vão à televisão, escrevem livros etc. O meu ponto é que... há algo que vai na vida deles. Há que abdicar. Não dá simplesmente. Geralmente é sempre ou os filhos ou a mulher. O sexo nunca entra na equação. Duvido muito que o Dexter seja um bom Pai. Ou que ande a esfregar pratos. Acredito é que haja uma minoria muito escassa de "Artistas" que conseguem só largar a obra. Algo que lhes sai. Natural. Sem tempo e pressas. Sem colocar o ego à frente da obra.
:)
R.
Se calhar é por isso que o Luiz Peixoto é conhecido por não tomar banho. Queres tu ver que o tipo se farta de trabalhar? E abdica da banhoca?
R.
:)) não sei. Eu tenho as minhas idiossincrasias, algumas pouco saudáveis... E abdiquei de muito. Escrevo todos os dias há 10 anos, podia ter feito um MBA, ido para o estrangeiro, dedicar-me mais à carreira... e a minha vida social ressentiu-se muito também. É muito restrita e às vezes sinto-me mal por não dar atenção a muitos amigos e não partilhar as coisas normais, aniversários, filhos, família... Também abdiquei de muitas outras coisas que me davam gozo. Vejo muito pouca televisão, deixei de ir ao estádio da luz, nunca vou ao cinema... Deixei praticamente de fazer música e era uma merda que me ocupava fins de semana e noites...
... e sou um chato do caraças para a Plaftie às vezes, volta e meia lá lhe martelo a cabeça com cenas que estou a escrever e ideias ou então fico assim todo esquisito e com a cabeça noutro lado, fecho-me no escritório... mas ela é a minha partner, custou encontrá-la (e foi pela escrita curiosamente) porque é extraordinariamente inteligente, sensível, entretém-se muito com as coisas dela e depois também é meio maluca e vive mesmo da sua arte (actriz) desde os 16 anos, não é um passatempo... Não somos dois estranhos apesar de sermos diferentes. E cumpri a fantasia de a ver várias vezes no palco em salas cheias de gente, a arrancar aplausos e gargalhadas, toda gira... que é uma merda bastante adequada para mim e para o meu ego de artista, esperá-la à porta do camarim e levá-la para casa :)
Olha, eu gostava de ter um feito porreiro na vida para poder dizer que podia isto ou aquilo. O único feito relevante foi ter sido expulso do único sítio que serve gin tónico à borla em Lisboa, o Hendrick's. Como é possível Tolan? Como?!
E uma vez fui esperar a minha pretinha (que curiosamente também faz teatro) ao camarim... entretanto enfrasquei-me com os Ingleses, porque aquilo é um teatro onde os Ingleses têm os dentes super amarelados e são super rudes. Assim idiossincrasias... tenho-as. E abdicar é o pão nosso de cada dia. Eu também sou assim unha e carne com a minha pretinha. Somos muito diferentes. Mas eu sou mais diferente. Acho que eu sou uma versão do Tolan, mas uma versão mais baratucha.
Não... estou a brincar. Não sou.
Mas é bom (agora a sério) que consigas conjugar isso. Ainda para mais estando à espera de um puto. Com a responsabilidade as crises diminuem. Logo se verá se perdes génio.
R.
É que não te percebo, rapaz: "Não peço a todos os filhos que amem ou odeiem os pais ou ambos, mas se vão escrever sobre isso, então por favor que tenham pelo menos aquele episódio em que o pai lhes pregou um estalo ou lhe disse que não valiam nada ou o outro dia em que, do nada, o pai lhes disse que tinha muito orgulho no filho e o filho ficou com um nó na garganta. No fundo, o epicentro do Caminho de São Giovanni é o próprio Italo Calvino e em que medida aquele caminho o formou a ele e em que medida o pai ou a mãe ou a merda do cinema o construíram como ele é. E considero essa postura desinteressante no caso da pessoa construída me ser desinteressante, como é o caso do Italo Calvino.". Ora então: por um lado, queres que escrevam de uma forma 'pessoal' sobre os pais. Por outro lado, não queres que se assumam como epicentro. Que raio queres tu? Que raio de leitura fizeste tu de um texto tão bonito e que mostra tão à evidência que não se é epicentro de nada a não ser de contigências diversas?
Vareta, falo de interesse, disse que essa postura era desinteressante no caso do epicentro me ser desinteressante, o que é uma questão de gosto, afinidade... Olha, se tu fizesses o mesmo exercício era certamente muito mais interessante, porque és completamente maluquinho e por isso fascinante. E concordo com isso de sermos o epicentro de sermos contingências diversas, mas acho que há contingências e contingências digamos assim, que são mais ou menos interessantes e que podem ser tratadas de forma mais ou menos interessante. Não questiono que o texto é bonito e que o Calvino escreve muito bem.
Põe lá aí um endereço de e-mail que eu quero enviar-te uma proposta, no contexto de uma merda em que ando a trabalhar há algum tempo, a ver se isso da revista literária é só garganta ou é para avançar, montar, arrebentar e outros verbos perigosos no infinitivo. Sobre o meu post já respondi lá na minha taberna.
tolan.baranduna@gmail.com :)
gostei muito de ler o teu ensaio, mas gostei ainda mais das tuas respostas aos comentários :)
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