Ainda a propósito da muito interessante lista do Eremita e sobre este ponto:
"57. Tenta contrariar a vontade de escrever lendo os teus autores preferidos."
Não nos é explicado porquê, mas já vi autores dizerem isto e justificarem com o receio de serem influenciados. A única coisa que de facto tento evitar quando estou a escrever são
contemporâneos. Os maus, não me
interessam (esteja a escrever ou não). Os muito bons podem levar a hesitações, por muitos motivos.*De resto, vou ler de propósito as coisas de autores mortos e bem mortos, autores que acredito que mais me possam entusiasmar naquele momento e que tenham alguma relação com o que estou a tentar fazer, quase como se fosse uma sessão espírita permanente. Procuro ficar completamente envolvido num determinado universo durante uns tempos, ter a imaginação sintonizada e envolvida num casulo. O caldeirão, para além de livros, também inclui música, espaços, locais, experiências, comportamentos...
*alguns motivos: um dos meus livros preferidos é o Robinson Crusoe escrito por Daniel Defoe e publicado em 1715. Robinson, isolado da humanidade, lida exactamente com a mesma desumanização com que uma pessoa do século XXI lida em determinadas circunstâncias. A decadência moral e espiritual que o leva a rebolar-se na lama e a ter períodos em que é mais próximo de um animal do que de uma pessoa, é semelhante à de um tipo que faça uma maratona de pornografia de internet, cerveja e playstation no seu t1 em 2013. A necessidade de uma referência moral e de se sentir parte de um todo, simbolizada na fé de Robinson, é intemporal, mesmo que três séculos depois tenha outras cambiantes concretas. Quando Robison se apega a rituais como cozinhar o seu pão, cultivar os alimentos e preparar armadilhas, não é diferente do cidadão do século XXI que mete na cabeça que tem de comer melhor, beber menos, acordar mais cedo, fazer exercício, vencer a preguiça... Ao transportar esse tema ou parte dele, três séculos para a frente, extraímos o essencial do mesmo e ficamos convictos que, por debaixo da aparente superficialidade do nosso contexto (que ridícula parece a nossa vida moderna comparada com as aventuras de um náufrago numa ilha deserta no século XVIII rodeado de selvagens) ficamos mais motivados, mais convictos de que algo nos une com uma verdade fundamental. Ora, num contemporâneo muito bom pode suceder que a proximidade seja demasiado evidente. Senti isto ao ler a Extensão do Domínio da Luta de Houellebecq. As suas descrições dos meandros do ministério da agricultura francês nos dias de hoje é extremamente familiar e levou-me na altura a abandonar um projecto de retratar a minha experiência semelhante, algo que tentarei mais tarde. Mais do que influenciar-nos e levar-nos a querer fazer o mesmo e da mesma forma, pode surtir o efeito oposto: ficamos com medo de abordar a mesma coisa ou de ter o mesmo estilo e isso pode levar-nos a mudar a nossa escrita retirando-lhe coisas para criar o nosso espaço. Também há outro pormenor muito imbecil: o problema da competição, da insegurança, particularmente relevante no caso de autores de um universo próximo, neste caso, Portugal. O meu pesadelo seria descobrir um autor vivo que me
causasse um deslumbramento completo, não apenas ao nível da sua
qualidade, mas da própria temática da obra e do estilo, ao ponto de me
fazer pensar "mas que merda estou eu a fazer?" No fundo, o síndrome
Cristiano Ronaldo. Dizer numa entrevista que o nosso ídolo é o Maradona ou o Van Basten e que nós não somos tão bons como eles, é fácil. O lixado é marcar três golos no sábado e no domingo o filho da puta do Messi
marcar quatro e ninguém se calar com essa merda a puta da semana toda. É inútil fingir isto: todo o autor fica felicíssimo de ver confirmado que os contemporâneos conterrâneos não são nada de extraordinário, muito pelo contrário, quando comparados com os tipos mortos de que gosta. Como devem calcular - se forem leitores com um mínimo de bom gosto - sou uma pessoa muito feliz.
12 comentários:
são boas indicações.
mas tenta escrever um livro com as 60 "regras" na cabeça (partindo do principio que as consegues decorar todas..) e vais ver o que acontece.
uma valente merda!
mas isto digo eu, que nunca tentei escrever um livro.
No caso de existir um contemporâneo conterrâneo muito bom, pode-se sempre arranjar maneira de lhe limpar o sarampo.
R.
Define contemporâneo, vá, para eu te deixar a pensar :P
Ah Ricardo, se for um estrangeiro não vale, Los Angeles e Paris são outra coisa.Se for contemporâneo conterrâneo e espectacular, o mais provável é eu nunca ouvir falar dele no meu tempo de vida porque morrerá desconhecido :)
Era mais contemporâneo conterrâneo vivo e mais ou menos da tua idade ou podemos ir para o Lobo Antunes e coisas do género?
E o Tavares? Não reconheces o talento do homem?
estava a ser moderadamente irónico no fim do post, mas eu digo: «descobrir um autor vivo que me causasse um deslumbramento completo, não apenas ao nível da sua qualidade, mas da própria temática da obra e do estilo».
Por exemplo, o Houellebecq tem ironia a dar com um pau e
nenhum desses a tem. O Gonçalo Tavares é o melhor dos "novos", mas aquilo a mim, não me diz praticamente nada e li um livro dele, o Aprender a Rezar na Era da Técnica que deixei a meio e considerei francamente muito fraco e forçado, intelectual, falso. Do Jerusalém, gostei muito, mas mesmo assim, parece-me tudo pouco pessoal e eu sou uma costureirinha, gosto de sentimentos, humor, lágrimas etc. e dou-me mal com literatura que é a destilação de mais literatura.
O Lobo Antunes foi o que mais mexeu comigo, mas é como se não fosse contemporâneo, lá está. Os universos dele, a experiência dele... é como se fosse de outro tempo. O que mais me tocou foram as crónicas deles, as primeiras. Depois gostei muito do Fado Alexandrino também. Mas não sei porquê, não consegui ler os romances dele a partir de certa altura. Foi como se estivesse impaciente, logo no início... as temáticas... volto à minha declaração inicial «não apenas ao nível da sua qualidade, mas da própria temática da obra e do estilo». É como se não me dissesse lá grande coisa, mesmo estando magnificamente bem escrito. Lembro-me que quando falei com ele, na feira do livro (autógrafos), tinha os joelhos a tremer :)
(o Lobo Antunes que eu mais gosto é o das crónicas porque tem lá ironia e tragédia, parece mais humano)
Concordo com a impessoalidade do Tavares, a literatura dele é o mais próximo possível de uma equação em forma de romance, é uma máquina precisa a escrever. Mas o gajo tem cenas geniais, o Uma Viagem à Índia é um exercício do caraças...
Do Lobo só li o Cus de Judas, quero ler mais, embora, lá está, segundo consta ele anda a escrever o mesmo romance há anos, algures ali pelo meio a qualidade tornou-se discutível (em termos de conteúdo, porque a forma parece-me praticamente intocável). Não sei se me aproximava dele para ter um autógrafo, digo-te já.
Sabes que o Paixão também diz que não lê contemporâneos, mas com a justificação de que ser-lhe-ia impossível continuar a escrever sabendo que haveria alguém melhor do que ele :D
Não leve demasiado a sério:
http://www.penultimosdias.com/2013/01/19/consejos-para-escritores/
Maria Helena
muito interessante Maria Helena, mesmo :)
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