quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

ser


Um criador tem duas forças antagónicas: uma é criativa(positiva) e a outra é crítica (negativa). Toda a criação, ou falta dela, resulta destas forças. Muitas vezes a crítica é tão forte que o saldo é negativo e o criador não faz nada. Se o saldo for muito negativo, não só não faz nada como ainda subtrai à sua volta. No outro extremo, temos os resultados de impulsos positivos praticamente sem autocrítica.

Um atalho em quem começa a acumular consciência crítica a mais, é o de desvalorizar a própria criação de forma irónica, tornando-a blindada , incorporando na própria obra a sua desvalorização ou relativização (muito nítido, por exemplo, na série televisiva Odisseia, do Bruno Nogueira). É como pintar um retrato e depois dar-lhe o título “tentativa de retrato #42” ou “tentativa frustrada de retrato”. Um retrato com esta legenda por baixo pretende não poder ser considerado mau, visto que o artista começou por distanciar-se dele, ironicamente. Até o pode ter feito mau ou exagerado de propósito. Se o meu traço é incerto, então vou desenhar aos s's, assim disfarço o facto de não me atrever a tentar fazer um traço direito. Em exposições de artes plásticas contemporâneas, é comum ver obras que vivem à custa da própria designação / título, algo que tem um truque qualquer cómico, irónico, distanciado e que tem como objectivo, supostamente, fazer-nos sentir sofisticados, cheios de vontade de fazer parte daquela cumplicidade sofisticada. Damos connosco a reprimir o desinteresse, a fazer um esforço para sorrir e fazer parte daquilo.

Picasso chamava aos seus quadros Primeira Comunhão, Guernica, Rapaz com cachimbo, Mulheres Correndo… E é o que está nesses quadros, de forma mais ou menos abstracta. Num quadro como “A Vida”, há mulheres, um bebé, casais abraçados... é uma cena que um cínico poderia considerar lamechas ou desinteressante ou piegas... Mas Picasso escolheu ser. 
Não há problema nenhum de não ser, de não expor um flanco vulnerável e encerrar em si próprio as possíveis ameaças, mas é uma escolha limitada do ponto de vista artístico e remete quase exclusivamente para o domínio dos críticos, colegas artistas e uma pequena faixa de público que na verdade queria era ser crítico ou artista também... Nos melhores casos, tem como único resultado palpável o de se ser considerado um artista genial dentro de um determinado meio. E isso é algo estéril, o oposto da vida.



4 comentários:

Anónimo disse...

gostei.

disse...

hhmm...

Mariam disse...

Único, como sempre. Habituas-nos mal :-)

Já tinha reparado que as maiores obras da pintura (pelo menos, aquelas que são consensuais) têm uns títulos que são meramente descritivos, tal como qualquer criança do jardim-de-infância ou da primária põe aos seus desenhos. "Uma casa", "Uma menina". Como "As meninas", "Nenúfares", etc (Monet, pois :-)

Só nunca tinha feito esse raciocínio. Muito bom. Again. And again.

Anónimo disse...

Aqui, estás lá.