Tenho uma piada muito boa preparada para quando o Eric Clapton morrer: uma foto do Eric Clapton com uma caption por cima a dizer will he know his name?
:)
Mas não era sobre isso que queria falar. Enquanto não me lembro do que era, hoje estava a ler os Cadernos da Casa Morta numa tasca, ao almoço, quando uma mulher se chega por trás de mim (ouvi saltos) e me pousa a mão no ombro e se inclina e diz "olá" num sopro perfumado, pronta para me dar um beijo. Levanto os olhos do Dosto e vejo umas pernas em meias escuras, uma mini-saia crepe, um casaco de peles tigresse e por fim uma morena com trinta e poucos que não consegui reconhecer. Quando me viu ficou atrapalhada e desdobrou-se em desculpas. Confundiu-me com o tipo que observava a cena a rir-se de uma mesa mais adiante e que a chamou. Também percebi que parte da surpresa teve origem no pensamento reflexo que o amigo passara de sapo para príncipe num passe de mágica. Até lhe notei alguma desilusão quando viu o amigo na mesa e foi ter com ele, às arrecuas, a pedir desculpa. Eu fiquei impassível. Estou estou sempre à espera que isto me aconteça quando leio livros de qualidade em locais públicos e só me surpreende o facto de não acontecer mais vezes. Ouvi comentários jocosos de outras mesas e às tantas todos comentavam o casaco parecido com o meu (e não igual como comentou o empregado, o meu é da Pepe Jeans e o do tipo era todo roskoff, como diria Dosotiévski). Voltei a ler os Cadernos da Casa Morta, tentando recuperar a solenidade e a concentração e mergulhar de novo na prisão siberiana e no dia a dia dos reclusos, uma coisa que me diz muito pois trabalhei alguns anos num instituto público. Já me lembrei. Aquilo de que queria falar, já me lembrei. Tinha a ver com um post do Alf. Já não metia aqui um link para um post do Alf há algum tempo. Ele até já desistiu de linkar o meu quando diz "Tolan" num post, às tantas os senhores do google ainda iam desconfiar que isto é uma tramóia qualquer de spam de links cruzados para subir nos rankings dos motores de busca.
Era para dizer que sou licenciado em Matemática (aplicada à Economia e Gestão, mas essa parte é menos fixe e às vezes omito-a) e para dizer coisas sobre isso. Como tenho muitas coisas a dizer sobre isso, saliento apenas algumas para não maçar os outros. Os melhores alunos eram rapazes, em geral, mas os piores também costumavam ser rapazes e os mais preguiçosos de todos, o grupo em que me incluo, eram sempre rapazes. Fiz o curso com muito sofrimento. Nunca me esquecerei das primeiras aulas em que no quadro desfilavam demonstrações intermináveis e incompreensíveis que se assemelhavam a coisas que eu só vira em pesadelos antes. Então, com a excepção de uma pequena minoria de gajos que tinham caído no caldeirão de Descartes em pequenos, o curso para pessoas como eu e a maioria dos alunos transformava-se em algo um bocadinho pantomineiro. Como explicar isto... imaginem que estão num bar no Japão e não sabem falar japonês, mas ouvem um tipo da mesa do lado a dizer ao empregado "nama biru futatsu" e a seguir pousam-lhe uma cerveja gelada em frente. Então vocês dizem ao empregado "ó chefe, nama biru futatsu se faxavor" e o emprego pousa uma cerveja gelada à vossa frente. Parabéns, aprenderam a pedir cerveja no Japão. Assim se tira um curso de matemática.
O problema acontece quando, num exame de análise matemática IV, é preciso pedir uma caneca de 500cl de cerveja preta sem álcool. Mas se isso não valer mais de 10 valores, um tipo sobrevive. Há muitas coisas divertidas e fascinantes, mesmo assim. Lembro-me de ficar extremamente perturbado com a impossibilidade de programar um verdadeiro e genuíno gerador de números aleatórios, de como tudo isso era falso, tudo uma ilusão, na origem, sempre um conjunto de condições lógicas determinadas e traduzíveis em binário e linguagem máquina e que apenas nos pareciam aleatórias devido à complexidade da multiplicidade de combinações possíveis... Se há coisa que se aprende ali, é a subjugação constante do ego a uma avaliação lógica objectiva e implacável. É uma coisa que me impressiona em muitos licenciados em letras, acham que o mundo é misteriosamente injusto ou mal feito, a começar pela matemática. Dá-me a sensação que os alunos de letras com QI acima da média sofrem horrores nas faculdades de letras e humanidades onde se sentem mais deslocados que um Dostoiévski numa prisão siberiana. No outro dia li todo um artigo no DN, redigido por um jornalista licenciado, sobre condenados alcoólicos americanos que queriam processar fabricantes de "licor" por não avisarem que o licor que adquiriam nas "lojas de licor" era viciante. Muita ginginha se deve beber nos EUA. Ora bem, se um um matemático fizer um erro destes, uma ponte cai ou um avião despenha-se ou um banco vai à falência ou uma central nuclear entra em meltdown... Se um matemático cometer a imprudência de dividir por zero, pode criar uma singularidade do espaço-tempo capaz de engolir 30% da nossa galáxia. São coisas sérias. E é por isso que existem programas de televisão em que escritores e poetas conversam uns com os outros e assumem, por entre lol's, que não percebem nada de matemática sem que isso belisque o seu estatuto de pessoas inteligentes, sensíveis e até sábias. Muito pouca gente parece ter vergonha em admitir que não percebe nada de matemática e até, que a odeia, e no entanto, de literatura, poesia, violinos de Chopin e livros do Thomas Moore Mann, bons entendedores é que não faltam.
17 comentários:
Como leitor assíduo de alguns blogues, gosto de imaginar sempre como é a pessoa que está a escrever do outro lado, faço isso de forma inconsciente. Acho que nunca imaginaria o Sr. Tolan licenciado em matemática. Penso que isto só comprova as minhas limitações intelectuais! xD
Eu, "hater" de matemática, me confesso. Tirando meia dúzia de coisas que me pareciam ter lógica para a vida das pessoas, o resto era tão abstrato, tão abstrato, tão abstrato, que o meu cérebro não alcançava. Aí, como qualquer bom aluno de letras, decorava as fórmulas e vai disto.
Tem graça, que sempre imaginei o Tolan um nerd adaptado a surfista...
Licenciado em matemática com uma vertente em gestão/ economia é, a meu entender a junção perfeita de 2ciências fundamentais. dizem que a matemática é uma ciência exacta. Ora não concordo, porque, lembro-me de quando anda no secundário achar que tinha capaicidade suficiente para investar teoremas ou formas de resolução mais fáceis para chegar a um mesmo resultado sem ser by the book. Verdade seja dita que essa tentativa de me armar em finória da matemática (até me deram um alcunha) dá-me uma enorme estalica no meu trabalho. (na universidade também ajudou, é mesmo fixe perceber de matemática aplicada à economia, de integrais com trignometria ando so on). Bom continuando e concluindo: deves ser bom na parte analítica!
"A good many times I have been present at gatherings of people who, by the standards of the traditional culture, are thought highly educated and who have with considerable gusto been expressing their incredulity at the illiteracy of scientists. Once or twice I have been provoked and have asked the company how many of them could describe the Second Law of Thermodynamics. The response was cold: it was also negative. Yet I was asking something which is the scientific equivalent of: Have you read a work of Shakespeare's?"
A citação vem da entrada da Wikipedia para "The Two Cultures", de CP Snow. Eras capaz de gostar de ler. Consegues encontrar o livro no Google Books.
Dito por quem detesta matemática, mas tem vergonha de dizer.
ahaha tu odiavas matemática :)) era tão engraçado, o teu sofrimento. Mas tu tens um QI acima da média, sua doutorada numa universidade de renome britânica... e os teus relatos do que foi o curso de letras estiveram na base de coisas que ali digo. Estavas bastante deprimida com as pessoas, que eu lembro-me. Se bem me recordo, quase ninguém lia livros, para começar.
e não concordo muito com a citação do senhor, isso de equiparar a noção da segunda lei da termodinâmica a shakespeare... não sei, diria que shakespeare estaria para a cultura geral como talvez noções básicas de cosmologia, a origem do universo, o princípio subjacente à teoria da relatividade, biologia, genética, a origem da terra etc. e esse tipo de coisas que são facilmente incluídas em bons livros de divulgação e em manuais escolares. Conceitos como o da entropia de sistemas parecem-me um bocadinho mais complexos que uma obra do Shakespeare. Recentemente li um sobre teoria do caos e terminei um de como ensinar física ao seu cão, e não são coisas tão fáceis de perceber como gostar de um Romeu e Julieta ou um McBeth.
Maria D.Roque, é isso mesmo. Nem imaginas como acertaste :))
Macbeth.
aliás, até desisti a meio do livro de teoria do caos... -_-
Para a doutorada numa universidade de renome britânica eu posso emprestar o Snow na edição comemorativa da Cambridge U.P. que me custou uns escandalosos 17 euros na fnac chiado, mas não consegui abandonar o local e enfrentar o resto da minha vida sem estar munido com o sofrimento irmanado dos que não compreendem como viemos parar a este beco das duas culturas.
Sobre Shakespeare estarei de acordo mas recordo que Snow não comparou com a cultura geral e sim com a cultura dos professores de humanidades, uma vez que nenhum deles se incomodava muito com a ignorância sobre o aumento da entropia (um conceito que devia ser chave para as ciências sociais, se existissem)mas consideravam um escândalo não conhecer as obras completas de Shakespeare.
Eu diria que para quem hoje tristemente conhece o paradigma das humanidades, a tragédia é ainda mais melancólica, uma vez que já nem o desconhecimento de Shakespeare causa grande alteração ternodinâmica, quaisquer que sejam as condições dos corpos.
Pessoal, está quase a começar o Benfica-Briosa, estamos aqui a fazer o quê?
:))))
ISEGuiano? :)
"Ora bem, se um matemático fizer um erro destes,... um banco vai à falência"
E nao eh que ja foram varios? Foram meia duzia de genios da matematica chineses que criaram os CDS's e CDO's que estiveram na origem do colapso do Bear Sterns e do Lehman Brothers. Em boa verdade, nunca saberemos se a matematica deles estava incorrecta. Nao so os banqueiros sao notoriamente burros como portas mas, neste caso, nao ha mais ninguem no mundo que compreenda aqueles calculos.
É uma narrativa como qualquer outra, a matemática.
Eu detestava matemática enquanto estudante. Felizmente que essa disciplina nao foi além do 12º ano.
Curiosamente, na minha vida profissional ganhou uma importância que nunca imaginei e (ESPANTO)até gosto!!!
eu sinto que a minha maturidade intelectual (e a de muitos colegas) andava sempre uns anos atrasada face à matéria e isso impossibilitava apanhar verdadeiramente o comboio digamos assim.
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