quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

vaidade



As pessoas em geral são preguiçosas e desatentas como as crianças. O humor é o Cavalo de Tróia do subversivo. Pode-se chamá-las de preguiçosas e desatentas (ou muito pior) desde que as façamos rir no processo.  O humor é a cobertura adocicada de vitaminas amargas. Nem dão por nada, até gostam. É fácil pintar lágrimas e fazer pantominas como um  cabotino. Demonstrar-se uma alma sensível, cheia de paixão. Ou então, ser incompreensível. Sim, ser incompreensível, críptico, é permitido desde que se tenha o rótulo certo. Se escreves um sms ou e-mail incompreensível, protestam e corrigem-te, mas se é um poema ou filme opaco no seu significado, de repente, eleva-se acima da mesquinhice dos mortais. É fácil, na crítica, no ataque, resvalar para o ressentimento estéril e colher apenas o interesse de outros ressentidos. O humor está na arte como a disciplina de matemática no curso de sociologia ou psicologia. A ironia é o antídoto na vaidade inata a qualquer artista. Nas artes, a tendência para a vaidade é imensa, ninguém é excepção, aliás, o pior vaidoso é o que tem vaidade na humildade e na rectidão do próprio carácter. A vaidade do artista, ao contrário daquela que encontramos no emigrante do mercedes vermelho, é uma vaidade que não tem piada. Porque há pobreza. Um pobre vaidoso é uma coisa que mete pena, tem de se enfeitar de plumas e bugigangas que os artistas distribuem uns aos outros quando estão juntos a brincar ao meio cultural. Então dizemo-nos poetas, escritores, pintores, músicos, realizadores etc. mesmo que aquilo seja um part-time como o seria body combat no Holmes Place. A cada um,  a sua especialidade. Os artistas são pombos a disputar migalhas que umas velhas vão atirando. Quando não há dinheiro, as relações e hierarquias perdem a objectividade saudável que, apesar de tudo, existe em sítios tão prosaicos como uma fábrica ou um escritório. A velha do estado é a que tem o melhor pão, mas há a velha do patrocínio, a velha da coluna no jornal, a velha da crítica, a velha da connection certa nos sítios certos do bairro alto...  todas umas vaidosas, essas velhas, adoram chegar com o saquinho e ver toda aquela comoção nos pombos e aqueles saltinhos que fazem. Algumas velhas já foram pombinhas também. Não há pombo mais bonito que o artista, o artista é uma jóia, uma pedra preciosa, uma delicatessen no coquetail, no lobby de entrada da sede da empresa, nas relações pessoais e íntimas de qualquer pessoa com mundo... Há pombos gordos no meio daquilo, os que encantam as velhas com os seus saltinhos e danças. Quanto mais pão comem, mais gordos e fortes ficam, afastando os pombos mais pequenos que arrulham no desespero do anonimato, ressentidos. Mesmo assim, pombos gordos e magros, todos seriam esborrachados por qualquer pneu de carro alemão num dia normal. Não se pense que é fácil ser um pombo gordo, uma vez chegado lá. A Dorothy Parker tem um conto sobre um preto cego a quem dão um fato todo pimpão e as pessoas do bairro, que antes o toleravam, decidem-se  a espancá-lo forte e feio mais ao fato todo pimpão. Que é para aprender. E daqui, podíamos abordar o tema da inveja.

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto (...))
(Pessoa/Álvaro de Campos, 1965)


7 comentários:

MDRoque disse...

"Mesmo assim, pombos gordos e magros, todos seriam esborrachados por qualquer pneu de carro alemão num dia normal." :\ Brutal, até para quem pensa que (todos os) pombos são ratos com asas....

AM disse...

os artistas são todos mas é umas grandes... pombinhas :)
as que não morrem com bolotas (cof. cof.) entaladas no gargalo, levam, mais cedo ou mais tarde, com chumbo do grosso...
por aqui, por estes dias, há notícias de chacinas aos 400 e aos 500
de cada vez

Anónimo disse...

muito bom, como sempre. admiro o cérebro que está desse lado.

G. Varino disse...

corrosivo, é assim tipo como o meio académico. dorothy parker é mto bom.

G. Varino disse...

tocaste nas duas causas da podridão humana: a vaidade e a inveja.

Vareta disse...

Não compreendo a imagem do pombo esborrachado pelo pneu do carro alemão. Não compreendo porque pombos, gordos e magros, conseguem voar, o que lhes permitira ter uma boa taxa de sucesso no ligeiríssimo esforço de mandar o carro alemão às malvas. Depois, enquanto metáfora, percebo menos ainda - é algo como "o que faz falta é a indústria e a arte é só circo"? Tudo fica ainda mais críptico com o "dia normal". Dias anormais serão assim, por contraposição, dias em que não há pombos atropelados? Ou em que os carros alemães não andam?

(Quando é que "os artistas" te fizeram mal, pequenino?)

Tolan disse...

O carro alemão é uma metáfora da vida materialista que levo e o "artista" é meramente uma distopia do futuro, o outro lado etc. "num dia normal" é uma expressão, quer dizer, não é nada de especial isso acontecer. Acredita que os 185cv do meu bm são mais rápidos que um pombo. Eu é que não gosto de os descolar dos pneus com a espátula dos animais (os bmw vêm com uma prática espátula de carbono, para descolar animais atropelados dos pneus ou da grelha frontal).