terça-feira, 4 de setembro de 2012
o fantasma
A viagem de avião passou rápido, li o 1919 do John dos Passos e vi aquele último do Tim Burton, aquele do Jonhy Depp vampiro naquela casa. É uma bela merda, eu tinha razão e nem o meio xanax que tomei melhorou o filme. Dormi confuso e sonhei com coisas de trabalho. Cheguei ao aeroporto e esperei muito tempo pelas malas, o que desfez o meu golpe de génio de viajante experimentado que foi descer as escadas normais a correr evitando as escadas normais para chegar o mais depressa possível à fila da verificação dos passaportes. Fumei dois cigarros de seguida cá fora e apanhei um taxi, foi a primeira vez que fiz a viagem de taxi, normalmente vem um choffer buscar-me ao aeroporto. É a crise. Vinha bastante relaxado, o xanax. O taxi tinha uma pequena televisão lcd sintonizada num programa sobre crime em S.Paulo, acho que se chamava A Cidade Alerta. O apresentador defendia castração química para o ginecologista que hoje mesmo tinha sido preso por abusar da mãe e da filha numa consulta, a tv faz freeze na cara dele e o apresentador diz "olha aí a cara dele" e diz o nome e depois espetam-lhe um microfone à frente da cara e ele diz que algumas mulheres brasileiras confundem perguntas profissionais e clínicas com assédio, depois um bando de meia dúzia de menores de idade sai de uma carrinha da polícia, algemados, e o apresentador defende prisão perpétua, depois imagens de videovigilância mostram um tipo a entrar num banco e dar dois tiros num segurança e a tentar pegar fogo à agência, e nisto tudo o taxista descontraído muda de faixa como um carro de fórmula um e nem parece atento ao pequeno lcd com as imagens que passam em câmara lenta. Ambulâncias em todos os sentidos fazem-me sentir "dentro do filme". Nuvens cinzentas confusas adensam-se no céu da interminável orla de São Paulo. O túnel João Paulo II. O túnel Ayrton Senna. Prédios esconços e decrépitos, arranha-céus espelhados, cidade fungo gigante, cinzento, carros, tudo parado, luzes vermelhas de faróis, motas a apitar. O hotel em que estou é bastante deprimente. O quarto é para não-fumadores, como de costume, e quando abro a janela entra um vendaval dos diabos, agravado por me encontrar num 9º andar, ia queimando uma das cortinas sintéticas com a ponta do cigarro. No prédio em frente, também com 15 ou mais andares, pessoas trabalham e um tipo numa secretária olha para mim. Temo que me possa denunciar ao hotel por estar a fumar. Jantei filet mignon e uma caipirinha no restaurante deserto e iluminado por uma luz branca tremelicante. Chão de azulejo frio, televisão com volume alto. Leio, leio, leio, é o mesmo livro que estava a ler em Lisboa, é indiferente onde estou, penso. Uma hóspede brasileira entrou depois de mim e foi sentar-se exactamente na ponta oposta da sala. Pediu um sumo de frutas e passou o jantar de olhos fixos na novela que passava numa tv cheia de estática enquanto esperava pelo jantar. Li quase metade do 1919, cenas da primeira guerra mundial. Lá fora a piscina do hotel, uma coisa do tamanho de um jacuzzi generoso, a superfície da água encrespada pelo vento, os arranha-céus e as gruas iluminadas por causa dos helicópteros, distorcidas no reflexo. Depois de jantar fui fumar um cigarro em frente ao hotel, enquanto pensei na semelhança entre certas passagens do Adeus às Armas do Hemingway e do 1919 do John dos Passos (1ª guerra, itália, condutores de ambulâncias), sendo que o do John dos Passos é literatura de outro calibre, mete o Hemingway num bolso, mete o Lobo Antunes num bolso (também faz daquelas brincadeiras impressionistas à Faulkner Som e a Fúria etc.), mete o Burroughs num bolso (também faz textos aleatórios com recortes de imprensa misturados) e isto tudo em frente a postes com 500 fios cada um a simbolizar o vigor desordenado do progresso brasileiro, indiferente ao humano e essas pieguices.. O vento a arrastar folhas. Um jovem de mochila de passo acelerado. Duas brasileiras de cabelo oxigenado, com passo ainda mais acelerado. Um carro sai de uma garagem de um condomínio, vidros à prova de bala. O quarto tem fogão sem exaustor, microondas, um frigorífico enorme cheio de cerveja. Estou a 8000km de mim mas a poucos dias de acabar com isto.
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5 comentários:
Mon pauvre... vai passar rápido... :)
essa última frase parecia do pessoa. muito bonita a descrição, apesar de triste e deprimente :S
Existem tarefas que por melhor que nos paguem, custam-nos a alma inteira.
Lindo, Tolas, lindo...
o programa chama-se cidade alerta e o gajo é o Datena, um horror, podias bem passar sem isso. pra prox pede ao taxista pra mudar de canal.
Bjo, sê bem-vindo a esta cidade que já é um pouco minha.
Animo ! Começar outro livro e com a outra metade do Xanax , daqui a pouco já é amanhã.
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