terça-feira, 8 de maio de 2012

vinho da madeira e cerveja

Acordei com os palavrões da Plaft e o som de uma roçadora a gasolina a desbastar a sebe do jardim da frente, mesmo por debaixo da janela do quarto. A minha almofada foi puxada num safanão. Os palavrões esbateram-se abafados pelas penas do meu travesseiro que apertou contra a cabeça, numa espécie de casulo de insonorização. Acalmou-se a pouco e pouco, os últimos palavrões foram já proferidos em sono profundo e dissolveram-se a meio, em sílabas imperceptíveis como na linguagem secreta de sonolentos elfos estivadores. Saí da cama. Entorpecimento dos sentidos, os caminhos todos fechados, desespero existencial, olhos baços com ocasionais sombras de morte, qual é o sentido da vida, hmm? Qual é? Diz-me, diz-me. Nota mental: nunca mais misturar cerveja com vinho da madeira, a não ser que queira viver num romance do  Lobo Antunes. Enquanto tomava banho e a dor de cabeça latejava com o vapor da água quente, seguiram-se toques frenéticos à minha campainha que rapidamente foram acompanhados por mais imprecações vindas do quarto. No início achei que era apenas um distribuidor de publicidade no primeiro dia de trabalho, entusiasmado e profissional. Depois seguiu-se a imagem mental de um carteiro com parkison. A campainha não parava, a Plaft já estava a gemer convulsivamente debaixo da almofada. Fui à janela ver porque motivo a minha campainha se tinha tornado no centro do universo. O meu carro estava estacionado em frente às sebes e eles precisavam de lhes aceder com as roçadoras a gasolina e adivinharam que o dono do carro devia morar naquele andar.

Despachei-me a tomar banho e a fazer a barba, vesti-me e despedi-me da Plaft como pude, por entre almofadas e edredons. Quando cheguei à minha viatura, estavam dois jardineiros de fato macaco fluorescente e máscaras, com roçadoras enormes, à espera. Pedi-lhes licença, um pouco envergonhado de ser tão novo e da minha vida ser tão fácil.

Depois, no caminho, vi dois acidentes daqueles em que um carro de uma mulher bate por trás no carro de um homem nos seus 40-50 e não se nota absolutamente estrago nenhum e o  senhor está de cócoras a fazer festinhas no pára-choques, a ver se detecta um afundamento ou uma irregularidade e não sai dali até encontrar uma.


4 comentários:

Isa disse...

Vai daqui a minha solidariedade total para a Plaft. a p*ta da vizinha, nao fora suficiente a sua voz de cana rachada falada aos berros todos os santos dias, resolve fazer obras sem parar. era melhor que fizesse terapia, mas quem é que a convence. foram pensamentos nada cristãos com que acordei hj, caro Tolinhas.

de resto, adorei o texto e fico bem feliz que a tua vida seja fácil. é isso aí, garouto.
Bjo

Anónimo disse...

O que um homem de 40-50 não faz para que uma mulher lhe dê o número de telefone.

a.i. disse...

haha, o Anónimo apanhou bem a piada.
é bonito ler estas coisas no Tolan: tomar banho de manhã enquanto a sua amada continua adormedida. Viva o amor!(acho que me estou a repetir, mas não me importo)

G. Varino disse...
Este comentário foi removido pelo autor.