quarta-feira, 19 de outubro de 2011

anos de heroína

Há um ano eu ia de bicicleta para o trabalho e era ecologista e agora vou num carro (não sei se já disse que ando com um carro alemão) suficientemente grande para albergar os secretários de estado de um ministro.
Felizmente, tem daqueles sistemas stop / start que desligam automaticamente o motor quando o carro pára. Nesses momentos sinto-me ecológico de novo e até fico chateado de voltar a não ser ecológico assim que o semáforo abre. Sou um ecológico intermitente digamos assim.
O lado negativo é que não cabe na apertada garagem do emprego. É muito grande, o meu carro. É comprido e largo. Dá para garagens apertadinhas mas tem de ser com muito jeitinho e manobras delicadas e eu de manhã quero é despachar. Então voltei ao estacionamento no beco dos arrumadores.

Há ano e meio que não voltava ao beco dos arrumadores e já tinha saudades deles. ano e meio é muito tempo na carreira agitada de um arrumador, é o equivalente a três décadas na função pública. Vejo com agrado que o capitalismo funcionou e houve grandes transformações. O que domina o beco agora é um que há dois anos tinha direito apenas a uma faixa de dez lugares em frente ao Pingo Doce e que era frequentemente escorraçado pelos outros. Agora, ou porque foi mais resistente à SIDA e hepatite e overdoses, ou porque escapou à polícia, está no topo da cadeia e os outros desapareceram. Foram substituídos por novos arrumadores que não conhecia, recém-precários da rua. Admiro um arrumador resistente, é preciso ser-se um filho da mãe da mãe duro para resistir a anos de heroína e rua. Subimos os dois na vida, penso para mim mesmo enquanto obedeço às suas ordens precisas com o jornal enrolado e lhe dou não um, mas dois euros, uma vez que o meu carro é enorme e potente.

Depois de admirar o meu carro e assobiar, vê-me com um livro e pergunta:
- Estás a ler o quê?
- Um livro do Nabokov.
- É um romance?
- É.
- Nunca li um romance… isso é tipo telenovela não é?
- Este em concreto, por acaso... é. mas os romances não são necessariamente novelas, há de guerra, terror…
- Epá, isso eu gosto.
- Devias ler um, um dia.
- Para quê?
- Não sei. - realmente não via motivo nenhum para ele ler um romance.
- Tenho lá três livros em casa por estrear, mas nunca os li. A minha cabeça. - faz sinal em direcção à testa.

Ainda falamos mais um bocadinho e depois vou tomar o pequeno almoço. Antes tinha medo (ou fantasiava com isso?) que iria parar à rua ou por alcoolismo ou jogo, ou ambos. E depois deixaria de sentir culpa e libertava-me de todas as preocupações metafísicas e eventualmente deixava de conseguir ler por causa da cabeça. A avaliar pelas notícias, os anos de heroína que aí vêm, não vão ser para os fracos.

4 comentários:

Fusível Ativo disse...

Isto está é para os dealers, os de heroína, mas principalmente os de soma.

Tiago disse...

Fazes-me lembrar um tipo que estacionava o seu Porsche fora do estacionamento do escritório todo inclinado em cima do passeio (tinha um colega que fazia teses sobre isso)...

Catarina disse...

Tolan, tu tens um carro alemão? E porque é que só falas disso agora? Não achas que já devias ter escrito algo sobre o assunto?

Aladdin Sane disse...

um mitra da zona dos anjos, nos semáforos do cruzamento r.anjos/alm. reis: "nhanhanha, não me drogo, ainda não comi hoje." quando reparou na música no autorádio: "eu ouço música. ouço jazz!"