O hotel de SP onde estou não é tão chique como o outro mas tem um buffet que me resolveu o problema do pequeno almoço, almoço, lanche e jantar. Havia comida suficiente para alimentar e apaziguar uma pequena favela. Foi uma noite agitada. Tinha de enviar uma coisa pronta para Lisboa e confundi-me com o fuso horário, de maneiras que acordei às 6:30 de Lisboa pensando que eram 6:30 de S.Paulo. Na prática eram 2:30 em S.Paulo e tinha dormido apenas 40 minutos e não 4 horas. Estranhei o meu sono e a escuridão total e às tantas, confuso e trôpego de janela em janela, já nem sabia se estávamos no século XXI a fazer de consultores com portáteis ou no XVIII num romance de Dostoiévski a discutir niilismo à luz das velas.
Quero deixar-vos o seguinte trecho de que gostei muito:
«A princípio não compreendia como tinha sido possível descer tão baixo, cair em tal ignomínia, e, sobretudo, ter esquecido o caso e não me ter envergonhado nem arrependido. Só agora consigo consciencializar o que aconteceu: a culpa tinha sido da «ideia». Em resumo: a minha conclusão é a de que, quando temos na mente alguma coisa imóvel, permanente e forte, que no-la ocupa obsessivamente, é o mesmo que afastarmo-nos do mundo e retirarmo-nos para o deserto, e os acontecimentos passam por nós quase nem nos tocarem, passam ao lado do essencial. Até as sensações nos chegam deformadas. Ainda por cima, temos sempre uma desculpa. Quantas vezes, durante todo aquele tempo, eu tratava mal a minha mãe, e de que maneira vergonhosa era desatento para com a minha irmã: «Tenho a minha "ideia", o resto são insignificâncias» - era isto que parecia estar sempre a dizer a mim mesmo. Também me insultavam, dolorosamente, e eu ia-me embora insultado; depois, dizia de repente a mim próprio: «Não interessa, sou vil mas tenho a minha "ideia", e eles não o sabem.». A «ideia» consolava-me na vergonha e na humilhação; também todas as minhas ignomínias pareciam ficar ofuscadas, encobertas pela ideia; esta, por assim dizer, aliviava-me de tudo, mas também enevoava tudo diante dos meus olhos; tal imprecisão no entendimento dos casos e das coisas é também susceptível, sem dúvida, de prejudicar a própria ideia, para já não falar do resto».
O Adolescente, Dostoiévski, tradução de Filipe e Nina Guerra, Editorial Presença.
3 comentários:
Bem-vindo :)
adorei o trecho e esses Guerra são uns géniozinhos da tradução ou pelo menos do bom português. um must as traduções dos russos deles.
fiquei curiosa com o adolescente...
bjo, bom trampo :D
é curioso terem traduzido para 'ideia'. poderia ter outra tradução.
É verdade Isa, são mesmo.
Anónimo, porque dizes isso já agora :) qual seria a outra?
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