quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
coração de ouro
Estou aqui sossegado a ouvir música e a fazer as minhas coisas, enquanto vocês dormem. Espero que estejam quentinhos, nas vossas caminhas, uns a ressonar, outros a suspirar e outros ansiosos com insónias. Está frio e é tarde, está-se bem é na cama. Nos próximos meses, este blogue vai andar parado, é tempo para o retiro habitual, marcar etapas, acabar uma coisa que me exige um coração de ouro. Vou postando coisas no Olá Pai!de vez em quando. Já aqui deixei esta música do Neil Young em tempos e entretanto encontrei dois corações de ouro novinhos:o da Plaft, que é bem grande, e um pequenino que ouvi numa ecografia. Parecia o coração de um pássaro a sonhar com voos, um som oriundo de um universo paralelo e mágico, cheio de ecos, como os cantos das baleias quando são captados por microfones subaquáticos.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
liberdade de expressão
Impressionante o coro de condenações ao protesto que silenciou Relvas, mesmo da parte de ilustres PS(!)
Quem condena o protesto tem a originalidade de invocar o direito à liberdade de expressão. O caso de Relvas é paradigmático: tentou silenciar uma jornalista com ameaças torpes e que a levaram, inclusive, à demissão, por falta de solidariedade da direcção do jornal. Acresce que Relvas falsificou a sua formação académica, o que torna provocadora e degradante qualquer aparição oficial que faça junto de estudantes em ambiente académico.
Cantou-se o
Vila Morena? Eram comunas? É uma pena. Também eu tenho pena que a sociedade civil (mea culpa)
não esteja para se chatear tanto como grupos organizados e
ideologicamente alinhados, mas é o que temos.
Pelo coro de virgens ofendidas do PS, pergunto-me o que Relvas teria de tão importante
para dizer nesse dia em particular que não possa dizer todos os dias, 365 dias por ano, em conferências de imprensa, enquadrado pelo veludo vermelho, talha dourada e bibelots de porcelana de uma qualquer residência oficial.
O que está em causa não é o direito de Relvas falar, mas sim partir-se do princípio que tem o direito de ser ouvido, mesmo em ambientes académicos, com uma plateia de estudantes que não têm, ao contrário de Relvas, um diploma falsificado. O Governo e o principal partido de oposição (que eventualmente antevê problemas do mesmo tipo) podem achar que sim. Mas há quem ache que não. Pode haver quem ache que o respeito se conquista e que também se perde, sendo a ética o principal critério de avaliação. Se isto tivesse sucedido a um ministro como o Nuno Crato ou Paulo Macedo, eu, por exemplo, não tinha vontade de escrever isto. O escândalo da continuidade de Relvas no Governo e a hipocrisia cometida pelo PS ao considerar abstracta a figura de Relvas (agora é um "membro do Governo silenciado"), dão a entender que os partidos de poder ainda não compreenderam que há consequências para a falta de vergonha.
Este protesto, para além da expressão impagável de cagaço na cara lívida de Relvas, teve o lado positivo de continuar a separar o trigo do joio e deixar bem à mostra aquilo que tenho vindo a dizer de há algum tempo para cá: em Portugal, mais de três décadas depois do 25 de Abril, o respeitinho continua a ser bonito. Respeitinho acima de tudo, especialmente dos jovens para com os senhores doutores.
Este protesto, para além da expressão impagável de cagaço na cara lívida de Relvas, teve o lado positivo de continuar a separar o trigo do joio e deixar bem à mostra aquilo que tenho vindo a dizer de há algum tempo para cá: em Portugal, mais de três décadas depois do 25 de Abril, o respeitinho continua a ser bonito. Respeitinho acima de tudo, especialmente dos jovens para com os senhores doutores.
galeria de arte com banda sonora
«kozyndan are husband-and-wife artists who work collaboratively to create highly detailed paintings and drawings for both illustration and fine art. They are obsessed with the ocean and being underwater and hope to someday come to rest at the bottom of the sea and slowly be devoured by deep creatures over many years.»
maminhas
Pode-me estar a escapar qualquer coisa, mas não consigo entender a lógica subjacente às feministas de maminhas à mostra que se atiram a Berlusconi um pouco por todo o mundo. Consigo pensar numa ou noutra forma de protesto que fosse efectivamente incómoda para Berlusconi, já nem digo indiferente, mas jovens zangadas a mostrar o corpo é um pouco o mesmo que o movimento Occupy atirar lingotes de ouro aos judeus de Wallstreet. Numa perspectiva mais ampla, nestes protestos feministas, seja pelos direitos dos animais ou contra cimeiras do G8, a única mensagem que grande parte dos homens recebe é "maminhas à mostra eheheh :)", mesmo que haja um corpo de texto debaixo da foto. Os homens resumem a sua atenção à fotografia da notícia e a reflexão a comparar maminhas e caras, no intuito de escolher as melhores. Podem dizer-me que despirem-se é uma forma de ganhar impacto mediático para propagar as mensagens relevantes, mas o que é isso se não a aceitação e reforço dos estereótipos da mulher objecto, especialmente no caso de manifestantes que parecem saídas de um casting de modelos? Enquanto precisarem das maminhas para serem ouvidas, estamos longe da essência de um feminismo que consagre a mulher.
um festival de poesia
Todos convidados a ir, de 21 a 24 de Março. :)
O cartaz do evento está um pouco farrusco, se calhar os senhores poetas escusavam de pousar-lhe chávenas de café ou imperiais em cima depois do print.
Eu gosto muito de poesia, é um dos meus hobbits. Se calhar gostava de participar neste festival com os meus poemas. Este aqui foi o último que fiz, depois de um passeio de 40km de btt.
Eu gostava de ser poeta
e de fazer muitos versos
eu cá tenho essa uma meta
entre outros objectivos diversos
entre os quais se incluem
ir de lisboa a torres vedras
de bicicleta perto das nuvens
em caminhos cheios de pedras
começa na subida ao cabeço de montachique
é lixado, sobe mesmo a pique
comigo mesmo vou ao despique
e pelo caminho faço um pique-nique.
e vou pensar muito em poemas
em coisas que tenho para dizer
lá no alto hei de arranjar temas
que a musa me vai oferecer.
e depois quando chegar
todo enlameado e a tremer
um banhinho vou tomar
e upa, toca a escrever
não vão ser palermices amadoras
mas sim coisas belas e românticas
com um qb de sofredoras
e muito altamente semânticas.
quero deixar a plateia emudecida
depois de fazer a minha declamação
a fila da frente estarrecida
silêncio e espanto, que emoção!
depois começam a falar
na plateia, a cochichar:
que poeta é este? foi magnífico!
diz que se inspirou em Montachique
ena, mas isso é terrífico
é mas é muita chique!
eu estou ali por amor à arte
quero ir aonde o poeta vai
não é por motivos de engate
pois mulher tenho e vou ser pai.
depois do show terminar
vem a minha parte predilecta
vou pro camarim relaxar
dói as pernas da bicicleta.
recuso as massagistas tailandesas
que nos camarins dão assistência
com óleos perfumados e velas acesas
poetas pedem final feliz com frequência.
domingo, 24 de fevereiro de 2013
fantasia, parte 2
Kozyndan - Nakano In Spring
Podemos construir um universo em que o fantástico é plausível e uniforme. A obra de Tolkien é um exemplo.Tolkien cria uma mitologia nova num espaço geográfico e temporal, próprio. A âncora da sua criação é um folclore já existente. Dentro desse universo, o fantástico é tão comum como o real e um dragão voador não é mais improvável do que um cavalo ou um cão. O leitor fica imediatamente predisposto a acreditar, focando-se no que Tolkien cria com esses elementos. Outra forma introduzir o fantástico é ter dois universos paralelos, um real que é o espelho do mundo do leitor, e um de fantasia, simulando aquilo que se passa na cabeça do leitor na passagem do real ao fantástico. Obras como Alice no País das Maravilhas ou a Viagem de Nils Holgersson, são um exemplo. Existe um mundo real (o nosso) e depois, por um portal, um cogumelo, um espelho, acedemos a outro mundo, o mágico. Alice confronta-se com lagartas falantes e gatos invisíveis, Nils Holgersson é encolhido por um gnomo e passa a entender os animais que falam com ele, mas nem um nem outro ficam especialmente espantados com o que vêem do ponto de vista do realismo (forma). São crianças. O que espanta Alice é a crueldade da Rainha ou o absurdo do Chapeleiro. Do mesmo modo Nils preocupa-se com a raposa má que persegue o seu bando de gansos, mais do que com o facto da raposa em questão falar. Por vezes, este tipo de histórias reforça a credibilidade com uma chave no fim, algo do género "acordar de um sonho", mas com alguma recordação ambígua daquele mundo fantástico (uma pena de ganso etc.), o que deixa no ar a hipótese de um "e se?" O leitor (muitas vezes uma criança neste tipo histórias) identifica-se com aquele sentimento. Os sonhos que teve naquela noite podem até ter sido visitas a um mundo paralelo e não apenas produto da sua imaginação, o que sabem disso os adultos? Há também um grupo de histórias em que boa parte do interesse reside no confronto entre o real e o fantástico, no espanto e no caos causado por essa hipótese, sejam zombies que emergem da terra ou aliens que aterram no planeta. Ao termos personagens que ficam de boca aberta ou assustados perante o fantástico, o autor credibiliza-o, assumindo que naquele universo que está a criar, as pessoas ficam realmente tão espantadas quanto o leitor ficaria se visse um zombie ou um alien. Por fim, temos casos como a Metamorfose de Kafka, o Nariz de Gogol, o Molloy do Becket ou Espuma dos Dias do Boris Vian, em que o absurdo ou fantástico é assumido sem referências, sem recurso a universos paralelos ou explicações. Não há sonho, não há causa ou efeito, há simplesmente uma coisa que é assim e que nem sequer pede para ser aceite, para que acreditemos nela, não está preocupada com isso, está no mesmo plano do real, pois o sol, que faz crescer as plantas pelo milagre da fotossíntese, também nunca nos pediu para que acreditássemos nele e no entanto, ei-lo.
sábado, 23 de fevereiro de 2013
espírito
Dankozyn, Spirit Animal Collective
A decisão de incluir o fantástico numa obra de ficção, muda-a completamente. Há uma barreira de cinismo e cepticismo que os adultos desenvolvem e que o autor tem de ser respeitar como um adversário. Como tal, a verosimilhança é essencial, mesmo na fantasia e essa verosimilhança depende das regras que o autor criar. Claro que há casos perdidos, oiço pessoas (horríveis) dizer que "não gostam de fantasia" quando rejeitam histórias que tenham monstros, fantasmas, vampiros, animais falantes, feitiçaria, ficção científica... Contudo, são casos raros, acho que a maior parte de nós tem saudades da predisposição para acreditar em tudo que tinha em criança. Era uma predisposição um pouco ambígua, porque não era o só Pai Natal, cidades de lego animadas ou cães falantes por telepatia... Também havia o lado do terror, do medo, um medo real e intenso.
Eu vivia numa velha casa do campo, com tecto em madeira, roído por térmitas, percorrido em tropel por grandes ratos a meio da noite. Na sala, um relógio de pêndulo enorme a quebrar o silêncio com um tic tac tão alto que me ensurdecia e uma salamandra que rosnava chamas como uma porta do Inferno. E aranhas, muitas aranhas, por todo lado, nos troncos da lenha, nos cantos do quarto, no meu ombro, de patas peludas, a caminhar em direcção ao meu pescoço, sentir aquela comichão leve, aquele tactear de veludo... Quando o vento soprava, a casa rangia e gemia. Tinha sido utilizada como escola primária e estava cheia de fantasmas de crianças de outros tempos.
Naturalmente, os meus pais, ao regressar do trabalho à noite, encontravam-me muitas vezes no pátio, ao frio, de pijama, roupão e chinelos. Deitado na cama via os faróis de um carro solitário filtrados pelos buracos dos estores (aquela maldita última secção que nunca se fechava completamente) e os pequenos rectângulos de luz, projectados nas parede, deslizavam ao som do carro a passar, iluminando, em breves relâmpagos, os olhos de plástico dos animais de peluche. Escondia-me debaixo dos lençóis, morrendo de calor, convicto de que eles se animavam quando eu não via e dançavam em rituais macabros, preparando-se para me sacrificar ao grande Deus dos Bichos de Peluche.
Mais tarde, venci estes terrores com um truque bastante engenhoso. Sempre que sentia medo, imaginava-me a mim mesmo como um mau, como um espírito feroz, desejoso de encontrar uma vítima. E caçava na noite. Escondia-me em arbustos, com a cara suja de cinza da salamandra ou então com um capuz branco com buracos para os olhos... Muitos sustos apanhou a minha pobre mãe, a regressar da adega à noite com o cesto de lenha cheio debaixo do braço e que, depois, eu tinha de encher de novo, com ela a tentar repreender-me enquanto recuperava o fôlego. Graças a essa terapia, fui perdendo o medo da noite. A minha mãe, coitada, foi ganhando o dela, passou a gritar "tás aí? não te metas com parvoíces" de cada vez que passava por sítios escuros e não me via em lado nenhum, o que demonstra que qualquer adulto tem potencial para regredir aos mundos de fantasia de novo.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
trabalho de casa
Encomendei o livro na Bertrand do Chiado, a livraria mais
antiga de Portugal. O gerente da livraria explicou-me que esse livro esteve anos
numa prateleira até ser devolvido meses antes. Tive de o encomendar, portanto.
E quando chegou, fui avisado pelo prático correio electrónico. Um dia, ao sair
do metro, fui lá comprá-lo e até me fizeram um desconto de 20%. Levei mais
livros, nomeadamente, uma nova edição do À Espera no Centeio, pela Quetzal, um
livro que nunca é demais comprar e acumular, pois poderá valorizar. Não posso
deixar, por isso, de recomendar a Bertrand do Chiado.
Bertrand do Chiado, onde os livros estão mais bem escritos que noutro lado!
Bertrand do Chiado, onde os livros estão mais bem escritos que noutro lado!
Vamos então agora ao ensaio. O livro é pequenino e tem uma letra 20% maior que o normal, o que
explica o desconto de 20% que me fizeram. Quanto ao conteúdo: o tempo tem um
curso irreversível e os progenitores morrem. Esta é, realmente, uma conclusão que se retira
da leitura do Caminho de San Giovanni e que pode surpreender o leitor mais
incauto. Também há muitas vírgulas e travessões na mesma frase e parêntesis que
nunca mais acabam (o parêntesis quando é aberto causa no leitor uma ansiedade
pelo respectivo parêntese fechado para
poder voltar ao texto principal digamos assim e ele até acelera a leitura para
não perder o fio à meada e quando este parêntesis se estica, estica, estica, às
vezes mesmo com pontos de final lá dentro, dá cabo dos nervos. Seria certamente
dispensável o uso de parêntesis tão extensos. No entanto, apercebi-me que com
esta técnica posso finalmente escrever um bestseller de mistério, basta-me
abrir parêntesis logo na primeira frase do romance e fechá-lo pouco antes do
fim, para manter o leitor sempre em suspense e acelerada leitura, pois ele será
certamente incapaz de abandonar o livro a meio de um parêntesis) e às vezes estes
parêntesis duram duas páginas, o que me parece manifestamente longo. Daqui se
pode perceber que o Italo Calvino se dá mal com a sequenciação das ideias pela
escrita e, como tal, com a própria linearidade do tempo.
Mas voltando ao tema principal (estou a alongar-me de
propósito no post porque sei que o senhor professor alf dá sempre um valor a
mais de bonus por composições de maior dimensão e os parêntesis até dão imenso
jeito para isso porque podemos introduzir neles um assunto que não tem nada a
ver com o texto como os critérios de avaliação do mesmo) há de facto pontos em
comum entre o pai de Italo Calvino e o meu pai. A mãe dele não tem nada a ver,
pelo menos, por enquanto ainda não vi a casa decorada com peluches de cães.
O problema é a escrita do Italo Calvino, uma escrita demasiado
fria, intelectual, madura e distanciada. É de tal forma adulta, dissecadora, escalpelizadora e auto-analítica, digamos
assim, que não me suscitou qualquer recordação emotiva ou sentimento capaz de
me arrancar a tal reflexão suprema sobre a morte de um dos meus progenitores,
nem mesmo quando do ponto de vista descritivo e circunstancial, parece haver
uma sobreposição entre o que era o pai do Italo Calvino e o que o meu era,
respectivamente, para cada um de nós.
O texto do palerma do Peixoto, sobre a cadela dele, por
exemplo, conseguiu fazer-me isso, porque reconheci no seu processo de
mudança - os cães passam de seres
utilitários a membros da família - o processo de mudança do meu pai: a única vez
que o vi chorar um pouco, foi quando lhe morreu uma cadela com quem caçou
durante mais de uma década. Naquelas lágrimas do homem duro que lhe cavou a
cova e a depositou enroladinha no cobertor preferido, junto com o seu chinelo
roído, vi a fragilidade dele, a morte dele, a minha, a de todas as coisas, no
fundo, a irreversibilidade do tempo e a perda, simbolizada no montinho de terra
fresca a destoar do resto da horta. E tudo isto enquanto comia um rissol de camarão e bebia um sumol.
O Italo Calvino é uma pessoa espectacular, mas aborrece-me,
no sentido de entediar, que a figura do pai seja tratada do mesmo modo com que
trata o seu fascínio pelo cinema, embrulhado em recordações homogeneizadas por uma enumeração exaustiva e
tépida. Não peço a todos os filhos que amem ou odeiem os pais ou ambos, mas se
vão escrever sobre isso, então por favor que tenham pelo menos aquele episódio
em que o pai lhes pregou um estalo ou lhe disse que não valiam nada ou o outro
dia em que, do nada, o pai lhes disse que tinha muito orgulho no filho e o filho ficou com um nó na garganta. No fundo, o epicentro do Caminho de São Giovanni é o próprio Italo
Calvino e em que medida aquele caminho o formou a ele e em que medida o pai ou
a mãe ou a merda do cinema o construíram como ele é. E considero essa postura desinteressante
no caso da pessoa construída me ser desinteressante, como é o caso do Italo
Calvino.
Passa-se o oposto no caso do Bukowski, uma pessoa que eu
considero muito interessante. No Ham On Rye, o pai é o carrasco e artífice que
o molda à porrada. Diz-me substancialmente mais - mesmo que o pai nunca me
tenha tocado com um só dedo - do que um pai que se limita a acordar os filhos muito
cedo para ir, cada um à vez, acartar uma cesta de legumes pelo caminho de São
Giovanni
Termino com a sugestão do livro A Confraria do Vinho,
do John Fante, um livro substancialmente menos ambicioso do ponto de vista
coiso, e até algo imperfeito do ponto de vista assim e assado, mas que se aproxima muito mais do que deve ser um tratado sobre o progenitor, a perda e a irreversibilidade do
tempo. Fica aqui a minha recomendação.
caro artista,
Caro artista,
Entendido?
1) Se o sucesso de outro artista te incomoda, por exemplo, financeiro, prémios, notoriedade... isso significa que tu próprio dás importância ao dinheiro, prémios e notoriedade.
2) Pelo ponto 1), deves tentar perceber exactamente o que pretendes. Se vives ou queres viver da tua arte, é natural e legítimo que pretendas o suficiente para sobreviver e continuar a fazer a tua arte para o resto da vida.
3) O ponto 2) significa que tens pelo menos a obrigação de uma ligação prática ao mundo real e submeter-te às incontornáveis leis da oferta e da procura. E como tal, em vez de dissipares energia em rancor e ressentimento para com as imperfeições e injustiças do meio, o teu dever é agir sobre o meio. O teu dever é ser alternativa. Obriga a trabalho e perseverança, não muito diferente do trabalho pragmático de um engenheiro, gestor ou cientista.
4) Tem sempre presente que em caso de emitires crítica, ela deve ser para ti. Se és artista, então o teu papel não é educar público pela crítica, mas sim pelo confronto com a criação: a tua. Se não gostas de algo, deves perceber que relação é que isso tem contigo. O que tu farias diferente? Deves procurar alguma
profundidade que te construa a ti próprio nesse processo. Vais dar contigo muito mais preocupado com os artistas bons que cometem erros ou se afastam do que tu és, do que com aquilo que é evidentemente péssimo só porque te chamou a atenção pelo sucesso que teve (comercial, crítico etc.)
5) É claro que pode apregoar que és um artista tão especial que te estás nas tintas para tudo: público, crítica, vendas, sucesso, consagração... seja o que for. Pode dar-se o caso de teres outras fontes de rendimento, o que é bom, e a tua arte ser um part-time de liberdade. Nesse caso, entende que de cada vez que o sucesso de outro artista (ponto 1) mexe contigo e te torna bilioso, estás a fugir à verdade. Não queres admitir que a tua rejeição de formas de sucesso (sejam elas quais forem) é na verdade uma defesa contra a tua vulnerabilidade ao mundo prático, uma vaidade que não queres admitir ou uma desculpa para a tua própria preguiça e cobardia de não tentar. Percorre esta check list, no caso de seres artista, quanto sentires azia.
6) Para seres coerente, deves pura e simplesmente ignorar o mundo exterior, avaliar as coisas pelo que elas são e ignorar totalmente como são percebidas e recompensadas pelo mundo. Se estás acima disso tudo, então tens mesmo de estar acima disso tudo, intocável como um Deus no Olimpo, apenas privando com outros deuses, os teus, mortos ou vivos, disposto a morrer à fome se for preciso. Acredita, não te vai fazer grande diferença a forma como o mundo exterior te avalia ou avalia outros, tirando talvez meia dúzia de pessoas próximas.
7) Cuidado com o ponto 6. Pode dar-se mesmo o caso de tu não seres nada de especial. Ou porque ainda tens de trabalhar e falhar muitas vezes ou então porque simplesmente não te está nos genes, não tens talento O facto da procura não querer nada com a tua oferta pode dever-se a seres menos interessante que outra oferta ou trabalhares muito menos que a outra oferta, e não ao facto de seres tão genial que és incompreendido. É mais provável que sejas mau, por meras probabilidades. Tenta sempre ter em perspectiva que podes ser pior, mais preguiçoso e mais estúpido do que pensas que és. E não tenhas medo de descobrir isso. O falhanço pode até ser libertador, permite uma melhor criatividade, mais natural e feliz. Talvez descubras então na arte algo de divertido, uma fuga, um prazer, completamente nas antípodas das almas torturadas que são muitos génios, mesmo os compreendidos e amplamente consagrados em vida.
Entendido?
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
as coisas que eu não consigo entender...
... a crítica violenta e radical à artista plástica Joana Vasconcelos. Não consigo. Já vi vários exemplos, o último foi este texto do Capitão. Não consigo perceber a base para este tipo de juízos. Os artistas plásticos movem-se no território do branding, do buzz, da marca pessoal, da imagem, do hype, das tendências, da moda, da novidade, da originalidade... O que faz aquele tipo que expõe cadáveres embalsamados cortados às postas e que é um sucesso em todo o mundo? O que é arte? Se fosse português, como seria a nossa percepção do trabalho dele?
Exceptuando casos sobejamente conhecidos, sempre tive a ideia de que as artes plásticas portuguesas não tinham qualquer expressão nas bienais, mostras e feiras internacionais onde essas coisas são avaliadas como na lota do peixe. É assim que funciona, o mercado. Tem sempre uma componente especulativa...
O que não é subjectivo são 1,6 milhões de visitantes. A mostra de Joana Vasconcelos foi a mais visitada no Palácio Versalhes desde 1960. A partir do momento em que ela faz uma exposição com tanto sucesso em Paris, para mim, está arrumado o caso. Não se metem 1,6 milhões de estrangeiros num museu com subsídios, favores, cunhas, críticos....
O sucesso dela abre portas a outros artistas portugueses e estimula o meio, coloca (ainda mais) a arte contemporânea portuguesa no radar e mesmo Portugal como um sítio onde se fazem coisas.
Quanto à minha opinião sobre o trabalho da Joana Vasconcelos, sempre subjectiva, acho-o bom. Despretensioso, irónico, coerente, engraçado... e com muito valor do ponto de vista de "fabrico manual", uma merda que eu, que sou um ignorante, valorizo, do tipo, ver que uma cena deu trabalho a fazer por oposição a uma que é só um cubo branco de plástico ou uma cama por fazer (true story).
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
se eu não gostar de mim, quem gostará?
Há adultos que se riem e ficam comovidos quando descobrem diários, cadernos ou composições que fizeram quando eram crianças, adolescentes.... Que palermas que pudemos ser, não é? :) Eu sinto isso sempre que revejo o que escrevi há pelo menos duas semanas :')
(...)O
primeiro contacto que tive com os XXXXXX ocorreu
numa manhã de Outubro, uma terça ou quarta feira. Sei que era um
dia de semana porque ia trabalhar, estava de fato e tudo, todo
stressado. Sei que não era segunda-feira porque me lembro dessa
manhã. Às segundas feiras tinha tanto sono que costumava dar por
mim no escritório por volta do meio dia, sem me lembrar de como
tinha vindo ali parar. Também não era quinta nem sexta, porque à
quinta, e especialmente à sexta, eu estava entusiasmado com o fim de
semana e não me recordo de estar especialmente feliz nesse dia.
Portanto, ou era uma terça ou uma quarta. Chovia muito. Em todo o
caso, é indiferente o raio do dia da semana. (...)
de olhos fechados
Wang Ningde, Some Days nº25
Foi um erro, eu sei, mas não resisti a ler a crónica na Visão, do José Luís Peixoto e a sua cadela, o amor aos cães e... fiquei com os olhos marejados de lágrimas a comer o meu rissol de camarão e a ler aquilo. Tocou-me num ponto fraco. Acabou-se. Já não consigo usar o Peixoto como musa negativa. Adeus Peixoto, olá Gonçalo M. Tavares. Que embuste... Tenho ido ao "chinês clandestino" do Martim Moniz, onde se rabiscam os pedidos em caracteres chineses. Parece um prédio normal, toca-se à campainha e no último andar, um restaurante na sala de jantar cheia de estrangeiros (deve vir nos guias de coolhunting ou o raio). Excelentes guiosas fritas. A sopa ácida-picante, muito boa também, a melhor que já provei, até porque foi a primeira, tudo por preços absurdos (3 euros e meio, 4 euros). Até o Borba fica pelos 4 euros, pouco mais que no supermercado. Assim dá gosto, hoje em dia, a carteira também come. Sempre que leio jornais fico mal disposto. O Jardim Gonçalves garantiu em tribunal a sua reforma de 167 mil euros (mensais) no litígio contra o BCP, isto depois de, com a sua quadrilha ter conseguido sacar 400 milhões em prémios do banco. Pagou um milhão de multa e foi condenado a uns terríveis 5 anos de impossibilidade de exercer funções na banca. Ainda ficou com direito a usar o avião privado, guarda-costas e motorista. E o tribunal deu-lhe razão! Lá terá as suas razões, o tribunal, pois de leis nestes crimes complexos de off-shores e vender gato por lebre em aumentos de capitais, não percebo nada. Só sei que o pretão ladrão que rouba o tostão vai para a prisão e o opus dei lambão que rouba milhão tem direito a avião em vez de fazer companhia ao pretão cheio de tesão e rezar até mais não. É um fundo de pensões do Millennium BCP que paga a reforma ao Jardim Gonçalves, ou seja, somos nós, porque 3 mil milhões de euros de instrumentos híbridos convertíveis (designados, muito acertadamente, CoCos), seguido de um aumento de capital de 500 milhões de euros, são pagos por nós para salvar o banco. As minhas reflexões são demasiado simples. Não se pode chamar filho da puta ao filho da puta, etc. já percebi. Há condicionalismos. A vida do cão do Peixoto vale menos que a do Jardim Gonçalves, li num sítio qualquer, em Portugal até os comunas dizem esse tipo de coisas consensuais para continuarem a ser pagos a peso de ouro por crónica no expresso, a tal ponto é preciso ser-se educado para sobreviver e ser levado a sério. Mais vale viajar de olhos fechados, abri-los para ver coisas bonitas e nunca sair da carruagem.
Foi um erro, eu sei, mas não resisti a ler a crónica na Visão, do José Luís Peixoto e a sua cadela, o amor aos cães e... fiquei com os olhos marejados de lágrimas a comer o meu rissol de camarão e a ler aquilo. Tocou-me num ponto fraco. Acabou-se. Já não consigo usar o Peixoto como musa negativa. Adeus Peixoto, olá Gonçalo M. Tavares. Que embuste... Tenho ido ao "chinês clandestino" do Martim Moniz, onde se rabiscam os pedidos em caracteres chineses. Parece um prédio normal, toca-se à campainha e no último andar, um restaurante na sala de jantar cheia de estrangeiros (deve vir nos guias de coolhunting ou o raio). Excelentes guiosas fritas. A sopa ácida-picante, muito boa também, a melhor que já provei, até porque foi a primeira, tudo por preços absurdos (3 euros e meio, 4 euros). Até o Borba fica pelos 4 euros, pouco mais que no supermercado. Assim dá gosto, hoje em dia, a carteira também come. Sempre que leio jornais fico mal disposto. O Jardim Gonçalves garantiu em tribunal a sua reforma de 167 mil euros (mensais) no litígio contra o BCP, isto depois de, com a sua quadrilha ter conseguido sacar 400 milhões em prémios do banco. Pagou um milhão de multa e foi condenado a uns terríveis 5 anos de impossibilidade de exercer funções na banca. Ainda ficou com direito a usar o avião privado, guarda-costas e motorista. E o tribunal deu-lhe razão! Lá terá as suas razões, o tribunal, pois de leis nestes crimes complexos de off-shores e vender gato por lebre em aumentos de capitais, não percebo nada. Só sei que o pretão ladrão que rouba o tostão vai para a prisão e o opus dei lambão que rouba milhão tem direito a avião em vez de fazer companhia ao pretão cheio de tesão e rezar até mais não. É um fundo de pensões do Millennium BCP que paga a reforma ao Jardim Gonçalves, ou seja, somos nós, porque 3 mil milhões de euros de instrumentos híbridos convertíveis (designados, muito acertadamente, CoCos), seguido de um aumento de capital de 500 milhões de euros, são pagos por nós para salvar o banco. As minhas reflexões são demasiado simples. Não se pode chamar filho da puta ao filho da puta, etc. já percebi. Há condicionalismos. A vida do cão do Peixoto vale menos que a do Jardim Gonçalves, li num sítio qualquer, em Portugal até os comunas dizem esse tipo de coisas consensuais para continuarem a ser pagos a peso de ouro por crónica no expresso, a tal ponto é preciso ser-se educado para sobreviver e ser levado a sério. Mais vale viajar de olhos fechados, abri-los para ver coisas bonitas e nunca sair da carruagem.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
Pessoas que perderam o emprego e agora tiveram de arranjar outro: o Papa que agora é um reformado no jardim da Estrela
- Então, tens de assistir, o naipe é copas!
- Nono tieno
copas. Solamente esso…
- Ás de
trunfo outra vez? Então como é que tu não tens copas? Tens dez cartas na mão!
- Nono tieni
copas.
- Não quero
jogar mais, jogo abaixo.
- Tem lá
calma, Artur. Olha os comprimidos.
- Calma o
caralho, quem é baralhou as cartas? Só me saem duques.
- Foi o
mordomo deste gajo.
- Este tipo aqui
especado é mesmo teu mordomo?
- Si, mi
fideli mordomi.
- Então pede-lhe
que vá buscar umas minis pra gente.
- Isso, toma
lá um conto de reis da minha reforma ó Ambrósio, e traz uma rodada ao pessoal.
- Io quero
solamente uno copo de leche, grazie.
- Um copo de
leie, olha m'este... Antunes, já decidiste? Vais votar no Bruno Carvalho ou no outro, o
das paletes de chineses?
- Tá calado
ó lampião. Mete-te nos assuntos do teu clube.
- Eu
preocupo-me com o Sporting. Não gosto de te ver mal disposto! E tu ó copinho de leite, és do Glorioso?
- Si, fidele al glorioso e eterno.
- Muito bem, és cá dos meus. O que é que achas do Jesus?
- Jesus es el bambino de Dios.
- Também gosto dele. Mas o Jesus inventa comó caralho às vezes...
- No! Jesus tiene sempre razon, no invienta nada!
- Sempre razão? Tás doido, tu. Não digo que seja mau, já tivemos pior, mas o gajo irrita-me, tem a mania que sabe tudo. Não te irrita a mania que o Jesus tem?
- Ai tenido una picola crise de fé en el, pero Jesus es Jesus, tienes que acreditar.
- De acreditar nele tou eu farto. Com os meios que ele tem, podia ter feito muito mais. E depois nem sabe falar como deve ser, sempre de pastilha elástica e de boca aberta e...
- Ai tenido una picola crise de fé en el, pero Jesus es Jesus, tienes que acreditar.
- De acreditar nele tou eu farto. Com os meios que ele tem, podia ter feito muito mais. E depois nem sabe falar como deve ser, sempre de pastilha elástica e de boca aberta e...
- Epá, olha-me aquela ali. Aquela ali, de mini-saia... deve vir da missa.
- Ai a minha tensão... Olha
lá ó copinho de leite, que é que tu fazias com aquilo?
- Jesus Cristi…
- Pois pois,
ajoelhar e rezar ehehe este gajo é fresco. Com ela era avé marias a noite toda.
- Ó copinho de leite, pareces um
gajo importante, mordomo e tudo, sim senhoras… Eras da máfia?
- No, tuto
esso es falso.
- Artur, deixa
lá o homem em paz.
- Tou-lhe só
a fazer uma pergunta. Se calhar conheces o Pinto da Costa, não?
- Pinto de
Costa? Si, era visiti de casa de mio antecessore.
- O que é que eu disse! É da máfia é.
- Ai tentado visitar-me e ai recusato e despues il sistema… ai tenido de renunciari al mi cargo, pero non quero ablar de esso.
- O que é que eu disse! É da máfia é.
- Ai tentado visitar-me e ai recusato e despues il sistema… ai tenido de renunciari al mi cargo, pero non quero ablar de esso.
- Pronto, não se fala mais nisso. Vamos jogar dominó. Mas o
cabrão do teu mordomo não toca com as patas nas peças.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
valentine
os duelos
No conto Uma questão de Honra, Nabokov não hesita em enfiar referências explícitas a duelos literários no texto, uma ao Leermontov e o seu belo cenário de montanha e outro à Montanha Mágica (referindo-se ao Thomas Mann como "um escritor qualquer", o que me leva a crer que o Nabokov não apreciava Thomas Mann). O duelo é um tema literário recorrente, penso que o primeiro que li foi num magistral conto do Maupassant. Escrever uma cena de duelo está para os grandes romancistas do tempo dos duelos como o desenho do nu para os estudantes de artes. O duelo coloca a personagem na antecâmara da morte. Nunca falta o olhar-se ao espelho nas horas que o antecedem e uma espécie de magnificação extrema dos detalhes mais pequenos, ampliados pela consciência de que são os últimos que se vê. E tudo por escolha própria, muitas vezes motivada por orgulho ferido e histórias de gajas, o que coloca o duelo numa categoria à parte da pena de morte ou da batalha suicida em que o protagonista é vítima de circunstâncias maiores. No duelo exige-se algo de muito concreto: o manejo hábil de uma espada ou o apontar de uma pistola com precisão, tudo isso vencendo o medo, um pânico... Os lados do duelo são frequentemente desiguais para conferir realismo e identificação com o leitor. Há sempre um hábil espadachim e um desajeitado que acha a espada demasiado pesada, um atirador exímio e alguém que não sabe o que é uma pistola, um homem confiante e outro cagado de medo. Que pesadelo pior do que o confronto com o nosso duplo em negativo? O Nabokov dá uma volta irónica ao cliché do duelo descrevendo uma história em que o protagonista, encornado pela mulher, foge cobardemente poucos instantes antes do duelo, rebolando de forma muito pouco digna por uma encosta abaixo. Gosto muito do Nabokov.
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
Rituais
Um amigo que anda em terapia aconselhou-me terapia. Toda gente que faz ou fez terapia aconselha terapia a quem não faz nem fez terapia. Todos referem, invariavelmente, que é preciso alguma sorte ou conhecimento para encontrar um bom terapeuta. E depois seguem-se relatos de experiências em que os tarapeutas / psicólogos debitaram clichés ou ficaram simplesmente assoberbados pela análise fria e completa das confissões, ouvindo em silêncio e marcando nova consulta no fim. Deve haver com certeza bons terapeutas (afinal de contas, os meus amigos frequentam-nos) embora não tenha visto nenhum mudar algo de fundamental, nem ao fim de anos de consultas. Parece-me uma forma de ritualizar, de forma clínica, o facto de se ter um problema. Os ‘terapeutizados’ ganham também um arsenal de lucidez e perspectivas diferentes. Penso que é positivo nos casos de pessoas que não têm o hábito de exprimir os sentimentos a si próprios ou a amigos. Recordo-me sempre do meu pai que era incapaz de proferir uma frase como ‘estou triste’ ou ‘estou aborrecido’ ou ‘isto foi um bocado frustrante’, educado que foi a reprimir fosse o que fosse que pudesse significar fraqueza. Mas sentia e sentia de forma absoluta, visceral. Talvez venha dele o meu cepticismo face a coisas como terapia. Em certos casos, o seu fogo frio parece cauterizar as emoções para que não sangrem mais. Um amigo teve o seu trauma gerador de ataques de pânico substituído pela aceitação de que idealizava a ex namorada e que tinha de aceitar a perda. Os ataques passaram-lhe. Em compensação, não se aproxima de uma mulher há mais de 10 anos e perdeu todo o idealismo romântico.
A verdadeira mudança ocorre de fora para dentro e é física, tem
relação com o corpo, os actos do corpo e o contexto do corpo. Por isso existem os
rituais, tanto nas famílias como nas religiões, como nas consultas
regulares ao
terapeuta. Todos os rituais fornecem conforto porque nos esvaziam a
mente do
ruído mental e subjugam o nosso ego, amor próprio e orgulho a uma ordem
superior, a uma autoridade superior, seja a tradição familiar, seja um
terapeuta ou um Deus, nem que seja por gestos físicos como rezar de mãos
juntas, meter-se no carro para conduzir os sogros ao restaurante num
domingo em que nos apetecia estar em casa a ver um filme ou ir à
consulta, sentar-se numa cadeira e falar. O meu ritual mais próximo da terapia é, obviamente, a escrita, embora seja apenas uma relação de simbiose. A escrita não me elimina o ruído mental, alimenta-se dele e ainda lhe fornece combustível e espero que seja constante como a relação vitalícia do Woody Allen com os seus terapeutas. Se o objectivo fosse a cura, a melhor que conheço é a salmoura do ego. É muito simples, a salmoura do ego: deixem-se enrolar por ondas geladas, depois sequem ao sol cobertos de sal e, à noite, adormeçam exaustos com os ouvidos cheios de mar.
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