sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

arte & dinheiro

O Ípsilon traz hoje uma interessante reportagem sobre a sobrevivência dos artistas e projectos culturais num cenário se crise. Recomendo a sua leitura. Tenho empatia pelo problema. Até porque afecta todos os sectores da economia, incluindo o meu que tem sofrido despedimentos em catadupa. Mas o sector da cultura é particularmente sensível, uma vez que tudo o que foge ao mainstream vive em crise ou na corda bamba desde sempre, devido à ausência de uma base de público interessado suficientemente ampla. O próprio jornal O Público, o melhor generalista e o seu suplemento Ípsilon, podem desaparecer e isto enquanto o JN ou o Correio da Manhã têm 3 ou 4 vezes mais tiragem. É o retrato do país que temos.
Por outros artistas, confesso, não tenho qualquer empatia. Há uma caixa de um Alfredo Martins, actor e encenador, umjovem, que tem pérolas como “é impossível pensar numa prática artística que ignore o social. A arte que o faça produz um discurso vazio e sem sentido”. José Sócrates levo-o passear à Finlândia com o seu INOV-Arte. Depois tudo entrou em depressão por “responsabilidade de um sistema político que não soube cuidar do sistema cultural do país” e pela “ausência de políticas culturais que não são concertadas de maneira a criar aos artistas os melhores espaços de criação”. Também diz que “há um sector experimental que precisa de apoios do estado e vai deixar de chegar ao público”. No mundo dos Alfredos Martins, existe um público extremamente preocupado com a ausência de sector experimental a chegar-lhe, mas não o suficente para pagá-lo sob a forma de bilhetes. Contudo, a peça não se foca neste tipo de funcionários culturais que fazem broches a secretários de estado da cultura e ministros, enquanto se armam em arautos do social.

A peça não fala de escritores, embora tenha uma caixa com o director da Porto Editora e entende-se porquê. O escritor é pobre por definição e são ridiculamente raros os casos de escritores portugueses que vivem disso. O escritor pode ser responsável pelo produto todo, só precisa de um computador e de tempo. Ao contrário do cinema ou do teatro, a materialização da obra de arte não precisa de investimento de produção, embora já tenha ouvido falar de casos (que quero acreditar serem um mito) de escritores que são financiados por subsídios. Um músico também precisa de salas para tocar, um elo para com o público, se for uma banda precisa de outros músicos, precisa de coordenar coisas. Um escritor não, pode ser uma criatura que faz a sua coisa sossegado, só precisa de criar espaço e tempo para isso. Se o Luiz Pacheco vivia como vivia, que direito tem um escritor burguês do século XXI em Portugal de se queixar?

Admito que parte do meu problema em não conseguir, por enquanto, levar a escrita a sério, se prende com uma ausência total de prémio, combinado com a existência de alternativas mais plausíveis e melhor remuneradas e que ocupam grande parte do meu tempo. Toda a minha vida fui habituado a uma recompensa material mínima pelo meu esforço. No caso da escrita essa recompensa é difusa e imprecisa, especialmente no curto médio prazo. Então só escrevo quando preciso e quero. Se por um lado isso parece ser uma coisa muito independente e genuína, por outro, faz-me não escrever quando não preciso e não quero, o que inclui 90% do tempo quando tenho projectos importantes a nível profissional e 100% do tempo subsequente ao lançamento de um novo Battlefield para a playstation. Não tenho qualquer pretensão de ter algo de importante a fazer nesse campo e que precise de ser feito. O dinheiro, para mim, é a tradução da utilidade que a sociedade, tal como existe (e que eu não faço intenções de mudar) me confere. Não significa que seja essa a minha utilidade real, mas é aquela que vêem em mim. E o dinheiro também atrai talento.

Uma pessoa pode decidir ser escritora, poeta, músico, actor ou, horror dos horrores, realizador de cinema, só porque sim. Estou a generalizar, obviamente que há excepções, mas tudo segue a mesma regra da oferta e da procura. Se temos bons jogadores e treinadores de futebol é porque gostamos de futebol, há procura de futebol e então há muita gente a tentar o mesmo e existe uma forte concorrência e filtragem de mediocridade. Na arte, pode muito bem nunca existir um filtro. O Estado só pode agravar este estado de coisas porque avalia estas pessoas e estes projectos, com os seus critérios e filtros altamente científicos e objectivos que envolvem lamberem-lhes o cu. Um artista tem o direito (até o dever) de se queixar de viver num país de imbecis (um facto) que não lhe reconhecem valor ou até do azar, mas não se deve queixar nunca do Estado.

Eu percebo essa coisa de querer ser artista. Ser artista é ser especial e as miúdas gostam. Dá status. Não há ricaço ou político que dispense a companhia de artistas, as coisas são como no século XVI com os patronos e as cortes, nada mudou. Um artista é uma joía, um excêntrico, um ser especial e talentoso. Desde puto que queria ser artista, primeiro actor, depois comediante, depois realizador, depois músico, depois argumentista, finalmente escritor (pelos motivos apontados acima). Mas grande parte desse sentimento vinha de um desejo de ser relevante de alguma forma ou compensar problemas afectivos, carências, um ego desmedido etc. e que me faziam ver-me ao espelho como aquela imagem do gatinho que vê reflectido um leão. Quando comecei a escrever era muito megalómano. Lembro-me de um projecto de romance meu que versava sobre um reality show por ocasião dos 500 anos da viagem para índia em que portugueses, todos castiços, com os nossos defeitos, conseguiam fazer a viagem à custa de muito desenrascanço. A acrescentar a isto, queria fazer tudo inspirado nos Lusíadas, como o Ulisses de James Joyce e ainda ser um Eça moderno. Ena. Mais um pouco e tínhamos um Gonçalo Tavares II.

Com a idade, esse sentimento megalómano foi desaparecendo e sendo substituído por uma resignação pacífica. Os temas tornaram-se mais claustrofóbicos e minimalistas. E escrever um romance bem feito dá um trabalho desmedido e faz mal à saúde e à vida social. Também há a questão sempre relevante do medo do fracasso. Não propriamente o fracasso visto pelos outros, mas de descobrirmos que afinal não somos assim tão bons como pensávamos que éramos ou queríamos ser. Os Alfredos Martins têm sempre o escape das "políticas culturais". Um verdadeiro artista é perfeccionista e angustiado e está muito mais preocupado com a sua obra ideal do que com as condições sociais e "subsidiais" que a permitem materializar-se.

Acredito que em 2012 vou concluir dois projectos importantes, só mesmo porque seria humilhante não os concluir. Em pleno ano de crise. E depois hei de ser editado por uma editora amadora alternativa que irá à falência poucos meses depois e criticado negativamente em jornais falidos obscuros e fecha-se o ciclo, mas já terei a medalhinha dos paraolímpicos da arte no peito e poderei trabalhar para a casa à beira mar, os filhos, o cão e o veleiro.

11 comentários:

disse...

ahah, o veleiro... o Opel Corsa!

Pedro Góis Nogueira disse...

Dos anos 90 até não sei quando houve uns subsídios de criação literária. O que não me chateou nada porque estava lá Al Berto (foi isso que pagou supostamente o assombroso "Horto de Incêndio") e Mário de Carvalho - dos romancistas que conheço é o único que vale a pena no actual panorama, ele e Rentes de Carvalho, que ainda gosto mais - pôde finalmente deixar de escrever nas horas que lhe sobravam da advocacia.
Outros há que os mandaria mas é trabalhar...

Anónimo disse...

Mas tu achas mesmo que é possível escrever, ou criar noutra arte qualquer, algo marcante ignorando o social? Achas que se pode reflectir sobre o que quer que seja ignorando o social? Eu nem sequer percebo como se pode enunciar tal tese. Só se o que entendes por social não é o mesmo que eu entendo por social.

E daí a andar a lamber o cú a alguém só porque se participou no inovarte vai uma distância maior do que aqui à Filândia, muito maior. E também aqui não percebo como podes tirar tal conclusão, mas concerteza o lapso é meu.

Li uma entrevista com um escritor africano que vivia algures no norte que tinha recebido uma dessas bolsas, mas dizia ele que o que lhe tinham dado para um ano dava para muito mais, porque ele não sabia gastar muito. Se não me engano davam-lhe mil euros por mês, durante um ano. Pareceu-me alguém a quem o dinheiro recebido dava a liberdade de tempo para escrever, sem com isso andar a fazer poupanças...por outro lado o sempre esbelto e jovial agualusa também a recebeu...ui, que medo. E não quero estar a sujar o nome de tão boa alma mas julgo que o romance do nosso SEC Viegas também recebeu para escrever aquela coisa de manaus, que envolve um detective que cheira a Montalban e muita lusofonia...pois.

Anónimo disse...

Querido Tolan, deixaste-me confusa.
O medo de destruirmos o nosso próprio complexo de génio - certeiríssimo. O verdadeiro artista é perfeccionista e angustiado - sem dúvida. A dúvida existencial do "ser ou não ser artista" para além de paradoxal é puerilmente enternecedora. No entanto nestas coisas da arte, como talvez já tenhas lido algures, assim que passa a flor da juventude sobra só a flor da técnica, técnica que advém da prática, que por sua vez exige dedicação (e perfeccionismo, e angústia, e tudo). Considero-te bom entendedor, mas caso esteja só a idealizar aconselho por extenso: os M Tavares estão dentro de cada um de nós. Num veleiro.

Anónimo disse...

PS- E já agora, a última frase do penúltimo parágrafo é a coisa mais idiota que já tinha lido da tua parte. Foda-se.

São João disse...

Este texto tão simples e tão directo mostrou-me duas ou três coisas que eu não queria ver sobre mim mesma, fez-se finalmente luz sobre a parvoíce. E muito obrigada pela expressão "medalhinha dos paraolímpicos da arte"; ficará para sempre no minha memória. Bom ano Tolanito :)

Tolan disse...

«Mas tu achas mesmo que é possível escrever, ou criar noutra arte qualquer, algo marcante ignorando o social? Achas que se pode reflectir sobre o que quer que seja ignorando o social? Eu nem sequer percebo como se pode enunciar tal tese.» - foi isso que eu disse? Eu citei um gajo que diz que uma arte sem pensar o social não tem sentido, logo admite que essa arte existe e não só existe como não tem sentido, do que se depreende que ele está a falar de um contexto social de intervenção, do género "crítica social" etc. Eu não digo que essa arte não possa (e não seja) tão válida como qualquer outra como é o caso de Dostoiévski ou Tolstoi. Mas não creio que uma arte sem qualquer preocupação social e apenas com uma preocupação estética, seja desprovida de sentido.

Vareta disse...

E a estética é algo "não social"?

Tolan disse...

Vocês embirrais comigo ._.

No contexto da entrevista, a intenção era considerar "o social" num sentido de intervenção política ou moral e, suponho, nas antípodas dessa intencionalidade, estaria apenas uma preocupação estética. Oscar Wilde dizia que a arte era bela porque era inútil ou algo do género. São duas perspectivas totalmente diferentes, embora no fim o resultado seja mais ou menos igual e dependente do contexto (a estética "amoral" pode ser, como no caso de Oscar Wilde, uma reacção à moral da sociedade).

Eu cá não faço essas distinções, o senhor é que disse que uma arte desprovida de social não tem sentido e é vazia.

Vareta disse...

Pois, o senhor foi tonto. Uma arte desprovida de social é... publicidade. E embirrar contigo é uma boa distração. Vê se vens cá para embirrarmos in loco.

Tolan disse...

Isso não vai entrar em guerra em breve por esses lados? :)